Partes de uma história

PRIMEIRA PARTE:

Em 2010, fui visitar um senhor que há muito não via. Foi da semente deste homem que eu nasci, porém evitei aproximação por mais de 30 anos. Ainda que ele tentasse um contato, mesmo sem me dar conta, adiava a saudade, adiava o encontro, adiava os aborrecimentos.

De repente, a vontade de rever e resolver um passado que dentro de mim se mantinha presente surgiu e não deixei passar essa oportunidade de sanar e cicatrizar várias feridas abertas. Isso porque achei que na ocasião os males seriam sarados. Engano...mas, sobre isso falarei depois. Por enquanto, fiquemos em 2010.

A programação da viagem para Aracaju-SE aconteceu no início do ano de 2009, quando o meu irmão, Augusto, a cunhada Jusceli e D. Zinha, minha mãe, resolveram que iriam em julho e que a minha companhia seria muito bem-vinda. O José, que sempre quis conhecer minhas raízes, concordou na hora.

Julho chegou.... desembarcamos na cidade que para mim não dizia nada, pois o verdadeiro destino era o município de Indiaroba. Foi de lá que pequeninha saí para viver em São Paulo. Não como retirante da seca...mas, retirante da necessidade, das injustiças e do desespero.

Enquanto os demais já estiveram várias vezes por lá e tiveram suas ansiedades resolvidas, era a minha primeira vez de relembrar e quebrar as idealizações.

Apesar de passearmos tanto e abraçarmos pessoas tão queridas, havia dois destinos que não me saíam da cabeça: casa da vó em Indiaroba e casa de Zabi, meu pai, em São Cristovão.

De quebra, o encontro com Painho foi antecipado. Ele veio nos ver em casa de Nilza. Dava para perceber em seus olhos um pouco de mágoa com relação aos filhos que, segundo seus pensamentos, o rejeitaram ao descaso e à solidão. Em parte ele tinha razão, já que pessoas são subjetivas. Zabilon não merecia nenhum castigo ou dor porque fez sofrer diversas pessoas que se aproximaram dele, inclusive seus filhos, uma vez que não me cabe tal julgamento. Todavia, naquela época, não o queria muito de perto, e ele sentia isso.

Ao visitá-lo, em sua casa simples, mas bem cuidada, pude perceber o quanto sentíamos falta um do outro. Tudo era velado, sinistro, escuro e mal resolvido. Houve decepção de ambas as partes...ele bebia para sobreviver e se esconder... eu queria sair de lá de alma lavada, o que não aconteceu. Era como se tivesse dito a mim mesma que cumpri o dever de vê-lo. Disse-lhe que o amava, era verdade, mais também lhe disse que as dificuldades até então não permitiram uma aproximação que pudesse resolver parte de seus problemas. Parte disso, sabíamos....era mentira.

Coração enganoso, sim, porque lá dentro, escutava minha consciência: "Deixe-o aí, ele assim escolheu viver". Chorei muito, talvez para esconder ainda mais que tinha algo a ser desmascarado naquela rua de lama, nos olhos de pai embaçados pela catarata e pela pinga e no fingimento de que a linha grossa do passado estava se desgastando e permitindo diversas ultrapassagens.

Em dez dias, fomos duas vezes a São Cristóvão. Na segunda vez, estava chovendo muito e havia um enterro da sobrinha da Telma, esposa do Zabi – 50 anos anos mais jovem que ele. Despedimo-nos ali. Ele não chorou, como fez na primeira visita, estava preocupado em não sujar seus sapatos de barro, pois deveria ajudar a derrubar a parede da casa, para que o caixão pudesse entrar e o cadáver ser velado. Era gente muito pobre! Meu coração ardia por dentro, mas tanto eu quanto ele, disfarçava as angústias. Sentia o cheiro da cachaça e percebia seu andar trôpego. Queria saber resolver todas aquelas emoções e dúvidas, mas não consegui.

Trouxe de volta na bagagem: doce de araçá, castanha de caju, muitas saudades e desenganos.

SEGUNDA PARTE:

Antes de ir embora, deixei escrito num caderno meu endereço de telefone em Campo Grande-MS. Acho que julguei impossível o deslocamento de Zabilon até o atual endereço. Enganei-me.

No ano seguinte, dois dias antes do aniversário de 80 anos de D. Zinha, em Itu-SP, recebi a notícia inesperada de que ele estava no portão de casa, me esperando. Desesperei.... sensações incríveis derramaram sobre mim. Pedi consentimento à mainha para levá-lo, pois, apesar dos meus irmãos não concordarem, eu não via outra saída. Ou ele ia conosco, ou não íamos a São Paulo. Ela concordou. Viajamos. De óculos escuros e de vez em quando uma birita, ele se comportou. Observou tudo com dignidade. Calado não se posicionava...Se chorou, não percebi. Encontrou com seus filhos, seus netos e amigos de outras datas. Eu sentia que o coração dele estava em festa. A família aceitava, mas não demonstrava habilidade em lidar com a situação embaraçosa.

Ao acabar os dias de festa e chegada a hora de voltar a Campo Grande, meu irmão, muito simpático, perguntou-lhe: – Pai, o que o trouxe aqui? qual o seu interesse?

Naquele momento, senti-me culpada por ocasionar um sentimento de revolta que podia ser evitado. Ele mostrou seus exames sobre a cirurgia de catarata e disse-lhe que não tinha dinheiro para executá-los. Ahhhh, então era isso que ele queria...dinheiro... mais uma vez dinheiro, como sempre!

Aí chegamos ao ponto: Zabilon sempre foi movido a achar que merece mais e que nós o esquecemos. Veio cobrar direitos que, aos olhos do filho, não era merecedor.

Todos, mais uma vez ficaram extremamente magoados. Eu, com a sentença: culpada!

Fomos embora. Na mala: uma máquina de costura, vergonha, disfarce, silêncio.

Cinco dias depois, Zabi reservou sua passagem e voltou para Sergipe.

Em sua mala: desenganos, tristeza, revoltas.

Tudo em casa continuou como antes.

TERCEIRA PARTE:

Em 4 de maio de 2012, chegando do trabalho, em um dia gelado, encontrei em frente ao portão um velho deitado sob o pé de manga, muito encolhido de frio e bêbado. Quem era? Zabi. Choramos muito....Percebi ali que Deus tinha me dado outra chance para renovar o meu amor de filha. Abracei meu pai, como nunca o fiz e lhe ofereci ajuda. O intuito era cuidar de seus olhos, porém eu e ele sabíamos que a cura vinha do Senhor que teve misericórdia de mim e fez cumprir o propósito que há dois encontros eu neguei.

Corremos atrás de todos os meios para que a cirurgia de catarata fosse feita em Campo Grande, mas não conseguimos. Um mês de espera até sua passagem ser remarcada. Ele bebia... chorava de saudade de Telma. Inquietava-se. Eu e José cuidamos dele, demos carinho, amor, saúde, amigos e valor. Operou-se ali um grande milagre: 30 anos de reconciliação. Houve uma verdadeira parceria divina para que todos os perdões fossem restabelecidos, as maldições fossem quebradas e a vontade de dar certo fosse maior que as indiferenças.

Zabi voltou para sua Telma renovado. Nem bebia mais! Não via coisas e nem conversava com seus demônios.

Em sua mala: romã, saudades, perdão, amor, alma lavada, renovação.

QUARTA PARTE:

O Natal de 2012 foi programado para ser em casa. A família se reuniu. Minha casa estava feliz! Deus agiu de novo. Zabi chegou inesperadamente para passar o reveillon conosco. Acabaram ali os disfarces. Éramos gente que sabia lidar com o passado e principalmente sabia aproveitar o presente.

Os visitantes foram embora. Mãe e pai ficaram na mesma casa. Conversaram. Fomos juntos à igreja. Ali eu chorei, entre os dois eu me senti filha amada. O momento encheu-me de graça. Libertou-me.

Ele foi embora e levou consigo parte do meu coração.

Hoje, 25 de abril de 2014, resolvi escrever porque estou com muita saudade.

Joísia