FIGURINHA DIFÍCIL

— Virei! Virei as cinco!

— Assim não dá! Cê ganha todas!

— Vamos de novo. Aposto três Continental.

— Eu ponho dois Saratoga. Cê topa?

Sem responder, Maneco põe no chão ladrilhado três pedaços de papel que Landim cobre com dois. São partes dos maços de cigarros, cortadas ou rasgadas, preservadas apenas as marcas, usadas para jogar bafo.

Tão entusiasmados estão os três garotos no seu passa-tempo que não notam um vulto aproximando-se furtivamente por trás. Sequer a sombra projetada de uma presença indesejada é notada pelos jogadores.

A voz cavernosa, velha, asmática, se faz ouvir.

— Ah!Ah! Sujando o chão do coreto. Vou pegar vocês e levar para a cadeia! Ouviram? Casca fora, cambada de pentelhos!

Os meninos já contam com esse tipo de intervenção. Quando entram no coreto do Jardim Novo para jogar bafo, sabem que estão transgredindo uma lei criada pelo jardineiro. Coriscos humanos, num piscar de olhos apanham as “marcas” e pulam o gradil de metal. A ameaça do velho Lázaro não se concretiza, pois não há quem consiga pegar os garotos em fuga.

Longe do local, sentam-se no meio-fio da sarjeta, os dedos dos pés descalços remexendo a areia da rua. Não mostram cansaço pela carreira nem arrependimento pelo que faziam.

— Vamos jogar na porta da venda do seu Júlio?

— Lá passa muita gente, não dá.

— Amanhã a gente joga mais. Domingo é dia de folga do lazarento. A gente pode ficar no coreto o quanto quiser. — O desprezo de Luiz Carlos é evidente, ao deturpar o nome do zelador do jardim, cuspindo ao mencionar o perseguidor.

Maneco é o melhor jogador de bafo de todo o bairro da Lagoinha. Ganha de todos, por isso aposta mais marcas. Normalmente, os jogadores mirins apostam uma contra uma, no máximo duas por duas. Maneco põe três, quatro ou mais marcas e aceita que o adversário coloque menos. Sua mão é grande, e num tapa eficiente, vira todos os papelotes.

O bafo é simples. Quem já jogou sabe como funciona. Num piso bem liso (ladrilhado, assoalhado ou de cimento fino) ou sobre mesas e carteiras escolares, as peças são colocadas com a face — ou marca — para baixo. O desafio consiste em, batendo rapidamente a mão em concha sobre os papéis, virá-los, colocando as “marcas” para cima. O primeiro jogador retira para si as marcas que virou. O próximo a jogar bate o bafo sobre as marcas remanescentes e apanha as que consegue virar. Geralmente com duas jogadas o jogo termina. Os meninos, entretanto, estão sempre inovando e mudando as regras.

— Dou três de lambuja e bafo primeiro.

A lambujem dada por Maneco é calculada. Tem certeza de que, com sua mão maior que as dos outros parceiros, vira todas as marcas. Além disso, exige sempre ser o primeiro a bater a mão. O primeiro bafo normalmente é disputado no par-ou-ímpar. Assim o ladino evita os azares da sorte e usa sua habilidade sempre em primeiro lugar. Não deixa uma marca para o adversário.

— Cuspe na mão não vale!

Luiz Carlos está sempre atento e reclama de tudo. Mas tem razão. Bater o bafo com a mão molhada de cuspe não valia, pois as marcas ficavam grudadas na palma. Elas deviam ser viradas apenas pelo efeito do “bafo”, ou seja, um pequeno vácuo criado pela mão em concha.

Landim limpa a mão na lateral da calça curta.

— Agora, cê vai ver o que vale de verdade!

Um golpe de bafo bem aplicado e eis as duas marcas viradas para cima.

— Viu? Comigo é assim, não tem lero-lero.

Chegam as férias escolares. Os garotos têm o dia todo para folgarem. Agora, além do bafo, jogam finca, soltam papagaios. Os dias encompridam-se. Combinam escapadas para nadar, à tarde, no Rio Liso ou no poção da Lapa Vermelha. Incursões pelo Buracão, uma enorme voçoroca nos limites da cidade. Mil e uma maneiras de multiplicar o tempo.

Diminui o interesse pelo bafo. Dezembro tem bom vento, próprio para soltar pipas e raias. As pancadas de chuva amolecem o chão, que fica bom para fizer tocas e jogar bolinhas de gude. Maneco, o campeão, o da mão grande, quer jogar bafo mas não encontra parceiros. Aparece com inovações. Lança idéias.

— Ei, turma, em vez de marcas de cigarro, que tal jogar bafo com figurinhas de artistas de cinema?

Alguns da turma já colecionavam tais figurinhas, minúsculas, que acompanhavam as balas Fruna. Houve um interesse inicial, mas como para obter as figurinhas necessário era comprar as balas, a novidade não foi longe. Logo-logo, Maneco já tinha ganho todas as figurinhas dos parceiros. Certo dia, Chumbinho apareceu com outra novidade:

— Tenho figurinhas de artistas que vêm nos maços de cigarro. Vale?

Mostrou as figurinhas: fotos de artistas de cinema, brindes encontrados nos maços de cigarros Classic Ovaes, de tamanho apropriado.

— Claro, põe aí, junto com as figurinhas de balas.

Em seguida surgiram, nos lances do bafo, figurinhas de aviões, de heróis de histórias em quadrinhos e alguns cartões do sabonete Eucalol. Apareceram, também, figuras de jogadores de clubes de futebol de S. Paulo e Rio, recortados de caixas de lápis de cor.

Aconteceu o inevitável: o interesse pelas figurinhas extrapolou o jogo do bafo. Começaram a troca de figurinhas. Apareceram os álbuns: Aviões da Segunda Guerra, Artistas de Cinema e de Rádio, um pitoresco álbum de Trajes e Bandeiras dos Paises de Todo o Mundo, entre outros. A troca de figurinhas agora era a mania da turma que antes jogava bafo. Novos garotos aderiram e até Dina, uma garota esperta, passou a fazer parte da turma do troca-troca.

Maneco disparou na frente. Conseguia fazer duas coleções ao mesmo tempo. E realizava transações com os álbuns. Ganhou um álbum para colar fotos dos artistas que vinham nas balas Fruna. Quando estava pela metade, trocou-o por um álbum de figurinhas de aviões, com apenas 42 (de um total de 280) figurinhas. Mas ele tinha já uma centena delas e logo seu álbum estava bem adiantado.

Pouco a pouco, o grupo foi mudando: surgiram novos companheiros, antigos colegas perderam o interesse pelas coleções, e ficou reduzido a apenas quatro colecionadores: Maneco, Dina, Gilberto e Chumbinho. Freqüentavam a mesma classe do Ginásio Municipal de São Roque da Serra e durante os quatro anos, solidificaram as amizades e a mania comum. Dina e Maneco tinham mais figurinhas. Chumbinho tinha menos e não conseguia acompanhar, em quantidade, os amigos, Mas obtinha as figurinhas mais difíceis.

— Onde você conseguiu esta figurinha do Gary Cooper?

— Ah, não vou te falar não. Quer trocar por outras?

Maneco faz boas trocas. Persistente e ladino, ia obtendo as figurinhas faltantes e completando seus álbuns. Ao terminar o curso ginasial, tem oito álbuns completos, centenas de figurinhas repetidas, e mais de duzentas estampas de sabonete Eucalol.

Adolescente, mantém o passatempo. Troca favores com os colegas: aulas particulares para os que precisam recuperar média de português, por figurinhas. Não quer nem saber de dinheiro, pois seu negocio é figurinhas. Com Dina, torna-se famoso na cidade e assediado por colecionadores, até de outras áreas, como caixas de fósforos, canivetes, etc. Permanece fiel às figurinhas e aos álbuns.

Terminado o ginásio, a turma de colecionadores se dispersa. Maneco consegue empregar-se em um banco da localidade. Cidade pequena, sem muitos recursos, um emprego do tipo já é uma conquista profissional. Dina fica algum tempo sem se definir, até que se emprega como telefonista. Chumbinho, Gilberto, Luiz Carlos, Landim vão estudar em outras cidades.

Com um ordenado só seu, tem dinheiro para dedicar-se ao seu passatempo. Por essa ocasião, tem mais de vinte álbuns e milhares de figurinhas, cartões ilustrados e afins. Adquire álbuns que já vêm com as figurinhas encartadas. Mostra a novidade a Dina.

— Veja, as figurinhas estão aqui. Não tem figurinha difícil nem repetida.

— Assim não tem graça. — A moça, que também continua suas coleções, não gosta dos novos álbuns.

A amizade entre os dois prossegue. De tanto se encontrarem para trocar figurinhas, passam para outros interesses, Descobrem que possuem muita coisa em comum, principalmente a afeição recíproca. Passam para o namoro. Para noivado e casamento.

Na festa de casamento, rodeada de amigas e exibindo toda a sua felicidade, Dina comenta com Leonor, sua melhor amiga:

— Sabe, continuamos trocando figurinhas. Para mim, Maneco é a figurinha mais valiosa do mundo. A mais difícil, a que estava faltando no álbum da minha vida.

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Antonio Roque Gobbo —

Belo Horizonte, 31 de outubro de 2002 —

Conto # 186 da Série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 30/04/2014
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