ShowMan

A multidão ensandecida gritava cada vez mais alto a cada explosão colorida dos fogos de artifício. Cartolinas com glitter e letras desenhadas com canetinhas coloridas balançavam com vigor enquanto o estádio ecoava o nome de Chad. Enquanto o elevador do palco subia, ele sorria consigo mesmo. Aquilo era a sua realização, o seu mundo. Mas ele precisava esconder esse sorriso de satisfação agora. Tinha que manter seu papel naquele momento. Seu personagem. Ah, o seu mundo. O Planeta Chad. Como ele adorava isso, o calor da multidão ao redor, até mesmo as vaias. Nada melhor para alguém que faz um personagem mal do que as vaias e os gritos de ódio. Ele sabia que muitos que estavam naquele auditório o estrangulariam se pudessem, mas não se importava. Significava que estava desempenhando bem seu papel. Que conseguiu se transportar para o Planeta Chad, onde ele não era apenas Chad Willians, nascido no subúrbio de Minneapolis, que teve pneumonia aos 13 anos, quando caiu em um lago congelado. Que aos dezessete foi reprovado no time de football do colegial por ser magro demais. O que, aliás, o impulsionou a fazer alterofilismo, pois não aguentava mais ouvir as risadas em suas costas quando passava pelos corredores da escola. Seguido dos treinos com a equipe de greco-romana, onde participava como peso-leve, mesmo não sendo o melhor lutador da equipe, as risadas diminuíam à medida em que ganhava uma luta ou outra. O corpo alto e magricela também começa a ficar de lado, e músculos começavam a brotar onde havia apenas pele e osso...

Ali, no Planeta Chad, ele era Chad “The ShowMan” Williams, campeão da Federação de Luta Livre e o mais odiado dos vilões daquele show business. Era o trapaceiro, o enganador, mas que mesmo assim agrupava cada vez mais fãs ao redor das cidades em que se exibia. Seu rival essa noite era o queridinho da platéia, Tom “Sandman” Sleeper. Este era o script de hoje. E ele seguia a risca seu papel. O sorriso de satisfação agora deu lugar ao seu semblante malvado. O cabelo úmido cobria parte do seu rosto, pois agora ele havia se transportado para o Planeta Chad. Quando o elevador para, duas colunas de fogo emergem do chão, uma de cada lado.

Essas colunas de fogo funcionam como as cortinas do palco se abrindo, anunciando o início do espetáculo. A platéia vai ao delírio quando ele começa a andar calmamente, fitando seu oponente que está em cima do ring. O script é claro, e ele segue à risca. Caminha calmamente, fitando seu adversário em cima do ring, enquanto acaricia o cinturão pendurado em seu ombro. Um sorriso escarnecedor brota no canto dos lábios. Quem o conhece, sabe que ele é completamente diferente daquilo que apresenta enquanto está no Planeta Chad. Sabe que ele é um homem dócil e educado, do tipo que puxa a cadeira para a mulher sentar. Quando é apenas Chad Williams, em sua casa, no mesmo subúrbio de Minneapolis, ele é apenas doce gigante, humilde e cordial com os vizinhos, que acorda cedo durante a semana, apara a grama aos sábados saboreando uma cerva gelada. Claro, nos sábados que está de folga, quando não é o ShowMan, com seus carrões conversíveis, seu tuxedo muito bem alinhado e as belas divas, como são chamadas, que o circulam.

Enquanto caminha, ele vê uma criança que estica o braço tentando tocá-lo. Ele é um vilão, sim, mas mesmo os vilões têm seus admiradores. Faz parte do show, isso. Ele para em frente a essa criança, e esta é a parte que mais o realiza. Quando seus olhos cruzam os de um fã. Ele quase se emociona quando olha nos olhos daquela criança, e tira de seu bolso o pente que usa em suas entradas. Chad pentea o cabelo para trás, essa é uma de suas marcas registradas, quando está confiante, e entrega o pente ao garoto, que o segura como se fosse a coisa mais importante do mundo. Uma lágrima de contentamento quase escorre dos olhos de Chad. Sim, Chad é um homem emotivo. Ainda mais, quando se trata de crianças. Para ele é difícil se manter nesse personagem nesse momento, pois se lembra que nunca poderá segurar um filho em seus braços. Não que não tenha tentado, mas ao fazer uma contagem de esperma, a mais ou menos um mês, descobriu ser estéril e isso ainda o abala. Por menos de um segundo, Chad quase desconstrói o personagem, mas se recompõe, voltando a ouvir a música rock alta que toca, como tema de sua entrada.

Ele continua caminhando, enquanto a música toca alta, chegando, enfim, à escada ao lado do ringue. Ele sobe, fazendo firulas, apoia-se na corda do meio, a força para baixo e adentra o ringue, caminhando para o centro e levantando o cinturão com força, dando uma espécie de soco no ar. Quando faz isso, mais fogos de artifícios explodem, um em cada ponta do ringue, fazendo uma enorme pira de faíscas vermelhas. Ele adorava isso. Toda essa pirotecnia, todo esse show, por isso fez questão de escolher esse nome: The ShowMan. Mas essa era uma luta que ele deveria perder. Segundo o script ele perderia essa luta, mas não se importava. Nesse show, vencer ou perder uma luta é o que menos importa. O importante é o espetáculo. As piruetas, os saltos, os golpes, os gritos, a admiração, o limite. Limite. Algo que não existe quando ele está nesse mundo, limite. Quando está no ringue, ele se torna um super-herói, sim, um super-herói, com super-poderes como aqueles dos quadrinhos. Diferente daquele Chad Williams que ia à padaria de manhã comprar brioches para sua mulher, agora ex-mulher. Não faz duas semanas, ela pediu o divórcio, quando em uma das inúmeras discussões que se iniciaram por causa do resultado dos exames, ela disse que não o amava mais e estava se interessando por uma outra pessoa. Uma pessoa normal, ela disse. Ela disse que ele era um dentista de Ohio e que eles se conheceram pela internet, em uma das muitas noites em que ela estava sozinha em casa, enquanto ele se exibia para uma multidão de desmiolados. Sim, era assim que ela via o seu Planeta. Um lugar de desmiolados retardados que não tinham mais o que fazer, enquanto duas crianças bombadas super-crescidas brincavam de “lutinha” embaixo de holofotes e fogos de artifícios.

Mas ali, no Planeta Chad, não existia isso. Tudo era emoção, tudo era lindo e perfeito. Os movimentos, os aplausos, os gritos emocionados. Tudo. Não tinha divórcio, não tinha esterilidade, não tinha o horror da vida real.

Como previsto, ele perde. A luta durou cerca de meia hora. A platéia gosta disso, e por ser o evento principal eles podiam demorar o quanto quisessem. A platéia gostava de ver o suspense, mesmo que muitos soubessem que não passava de um teatro muito bem coreografado, eles gostavam daquele espetáculo circense de pulos, pontapés, socos e, muitas vezes, um sanguinho para deixar um pouco mais emocionante. Sangue cenográfico, que fique bem claro. Eles sabiam fazer isso sem que a multidão percebesse. Não que saíssem dalí de cima ilesos, muito pelo contrário. Às vezes, as dores musculares eram insuportáveis, e o manquejar durante a saída era real. Real até demais. Mas ali, aquele sim, era o seu Planeta. Aquele, era o seu mundo real. Enquanto “Sandman” caminhava, olhando para ele, ele se levanta e o fita, para finalizar o seu ato, descer do ringue, e ir embora. Como descer? Como ir embora e se transportar novamente para o Planeta Terra, onde tudo é cinza, fosco e real? Era doloroso, mas precisava fazer isso. Para que não se estrague o show, alguns atores vestidos de juízes e paramédicos se aproximam e o ajudam a descer do ringue e caminhar em direção ao palco montado no fim da passarela. Quando adentra por trás da coxia, lá estão eles, com ataduras, gases e muito anti-inflamatório muscular. O odor do Gelol é intenso ali, enquanto muitos se lembram de momento que acharam que iriam se quebrar ao meio, outros o parabenizam pelo grande show. “Sandman” não era mais o “Sandman”. Era apenas Tommy, seu amigo e confidente. Tommy se aproxima dele, com um dos ombros enfaixado por causa de um movimento que quase não deu certo, o odor de Gelol invade as narinas de Chad agora mais forte, vindo do corpo suado e surrado de Tommy, que o abraça meio sem jeito por causa da dor. Tommy soube horas antes de entrar no ringue que Sue havia pedido o divórcio e agora vem consolar o amigo, tenta animá-lo, chega a convidá-lo para um chopp em um bar próximo, mas ele recusa polidamente e diz que prefere ir para casa, pois está muito cansado. Tommy se oferece para levar Chad, mas este recusa novamente, dizendo que está bem e só precisa ficar sozinho um pouco. Tommy abraça Chad mais uma vez e pede que o amigo fique calmo e mantenha a cabeça fria, que não faça nenhuma besteira e que na manhã seguinte ligaria para que os dois fossem corre juntos pelo parque. Chad diz que tudo bem.

No caminho de volta, Chad se lembra dos olhos marejados e felizes da criança para quem deu o pente. Ele nunca imaginaria que um simples pente, comprado em uma lojinha de esquina, faria a felicidade de uma criança para uma vida inteira. Ele pega a interestadual que liga Milwaukee a Minnesota e começa a pensar na vida. Lembra do resultado do exame, das brigas e começa a chorar. Nesse momento, não existe o Planeta Chad, não existe o mundo perfeito e lindo, existe apenas o banco de couro da state wagoon e a música country no som do carro. E suas lágrimas. Então, ele olha o retrovisor e vislumbra, por um segundo, os olhos felizes e marejados da criança desconhecida que quase o fez sair do personagem naquela noite. Nesse instante, ele para o carro no acostamento, abre a porta e desce. Olha para os lados e a estrada está deserta. Chad limpa então os olhos molhados de lágrimas salgadas, abre os braços, olha para cima e sussurra um tímido “obrigado”. Tão tímido como ele fora a vida toda. Tão tímido quanto o seu teste no time de football. Entra no carro, gira a chave, e segue para casa, cantarolando junto com o rádio.