LAÇOS DE SANGUE

Ângela atravessara rapidamente a avenida olhando cuidadosamente para os dois lados, mas sem ter a preocupação ou paciência para ir até a faixa de pedestres e acionar o semáforo daquela nublada manhã de domingo. Fazia dois meses que não via seu irmão André, e enquanto seus pés caminhavam ávidos até a capela do cemitério, lamentava-se por não o ter procurado antes.

Deixando para trás seus pais de criação que preferiram fazer o uso correto da faixa de pedestres, Ângela tomada por um sentimento misto de ansiedade e saudade, colocara a mão na maçaneta da porta. Abrindo assim a sala da capela e nem imaginando ser a primeira a chegar, finalmente viu seu irmão.

Apesar de ter sido friamente assassinado com três tiros no peito, sua aparência não estava deformada como a de sua mãe, sepultada a quatorze anos atrás, vítima de um infarto fulminante no coração.

Velando seu corpo e obviamente lembrando dos momentos que viveu ao lado do seu irmão, não chorou muito, pois sabia e tinha a consciência de que o que podia fazer para ajudá-lo a sair do mundo das drogas, deveria ter sido feito enquanto ele estava vivo.

O peso da culpa caiu, juntamente com o arrependimento de não tê-lo procurado mais vezes e ter insistido com mais veemência. Mas não era aquela a hora mais apropriada para se jogar pra baixo, pois a lição estava sendo assimilada e tinha que ser exercida para os que continuavam vivos com ela na sua jornada de vida.

Ângela tinha cinco irmãos de sangue, os quais não fora criada com eles e nem com seus pais biológicos. Fora uma criança muito adoentada quando bebê e sua mãe Edna sem muitos recursos financeiros, optou por deixar Ângela pra sua irmã Ivelise criar. Sendo assim, Ângela fora criada por seus tios, juntamente com seus três irmãos que na verdade eram primos. Mas, houve um tempo na vida de Ângela em que conviveu por três anos com sua família biológica, foi na sua adolescência. Não foi um período fácil, mas foi um período muito importante para que Ângela aprendesse mais daquele mundo familiar e conhecesse então de uma forma mais profunda suas raízes, apesar desse período só vir a ser apurado muitos anos depois quando realmente ela viria a amadurecer.

Voltando então subitamente para a sua nada calorosa realidade, foi tirada de seus pensamentos quando viu entrando pela porta seu irmão mais novo Leonardo, juntamente com o mais velho Marcelo. Logo em seguida outros familiares iam chegando. A família era bem grande e por isso só costumavam se reunir assim, no enterro de entes queridos ou dos não tão queridos também. Uns iam ligando para outros e em pouco tempo aquele lugar já estava cheio de parentes, pois amigos de verdade, eram bem poucos os que André tinha, ou quem sabe, até mesmo nenhum.

De uma forma mais reservada e se afastando de todos, foram caminhando e parando sob um feixe de sol que resolveu aparecer, conversavam Leonardo e Ângela.

- Você sabe como está sendo difícil especialmente para mim, não é mana?

- Sim, posso imaginar sim. Eu sinto muito. Eu-eu sinto tanto...

Tirando os óculos escuros, Leonardo continuou falando, mesmo sentindo seus olhos queimando e que insistiam em lacrimejar.

- É difícil demais aprender desse jeito. Estar brigado com seu irmão e ficar sem vê-lo e nem falar com ele durante sete anos! Tem noção disso? Sete anos? E de repente ser despertado no meio da madrugada para ir reconhecer um corpo no IML que possivelmente poderia ser o dele, e reencontrá-lo assim? Dessa forma? Eu quis desabar mana. Por dentro eu desabei, mas quis desabar com tudo, por fora, bater no peito dele, fazê-lo acordar, pedir perdão, ser perdoado. Passou um filme horroroso, doido e tão rápido na minha mente, de toda a vida que tivemos. Foi da infância até parar ali, ele congelou exatamente ali naquela cena: Eu-parado-diante-do-meu-irmão-morto.

Ângela ouvia pacientemente e só podia fazer isso, pois deixar o irmão desabafar era o melhor que podia fazer. Tentava mais que podia se manter forte e assim tentar passar alguma força para seu irmão que com certeza naquele momento carecia mais do que ela.

Neste momento em que o consolava a medida que podia, foram interrompidos por uns dos tios presentes, que os chamavam para a oração e o pronunciamento das últimas palavras para André, antes da hora do enterro que já se aproximava. Abraçados entraram e ficando posicionados ao redor de André, sua irmã Ângela procurou delicadamente por sua irmã mais nova Ana Lúcia e assim juntas deram as mãos, enquanto uma prima mais velha, Natália, fazia os agradecimentos. Durante o pronunciamento a mente de Ângela viajava cada vez mais e mais para dentro de si mesma e revia apesar de forma rápida, mas minuciosa cada ponto onde falhou com seu irmão. Onde poderia ter acertado se investisse mais, se tentasse mais com ele. Não era só culpa em si, pois só a culpa não traz alento algum, mas era uma mistura de culpa com um sentimento genuíno de não querer falhar neste sentido novamente, com os que ainda caminhavam com ela nesta jornada da vida. Transcorriam também por suas veias alguns sentimentos salpicados de revolta, pois estava claro que muitos que estavam ali não se importavam de verdade.

Vinda de uma família grande de treze irmãos, sua falecida mãe sofreu algumas hostilizações por parte daqueles mesmos tios ali presentes. Era como se olhassem para André e pensassem que assim como a mãe não teve juízo na vida, os filhos estavam sob uma espécie de maldição contida no sangue, uma quem sabe, espécie de maldição hereditária. Acontece que Edna era a mais bonita das irmãs, teve os filhos mais bonitos também, e isso se estendeu aos netos. Inclusive o próprio André, era o seu filho mais bonito, que mesmo apesar daquela situação com vícios, foi um rapaz de uma bela aparência até os seus então encerrados 37 anos de vida. Naquela atual situação, sua neta e filha de Marcelo, era modelo profissional de uma beleza rara. Esse tipo de beleza sempre atraiu a inveja dos outros irmãos de Edna, em especial das irmãs que sempre procuravam a difamar por não ter sorte no amor e se envolver com vários homens na tentativa de acertar. Agora ali diante de seus primos e tios, onde tinham se formado advogados, médicos, pequenos empresários, pastores e outros mais com seus cargos bem sucedidos e diante de seu irmão morto por envolvimento com drogas, as quais fizeram mais mal a ele e a ele somente, parecia que Ângela lia os pensamentos dos que ali estavam presente.

De repente ela foi despertada daquele meio que estado de “transe” por um silêncio que se estabeleceu na capela. Era sua prima Natália depois do seu discurso que perguntava se algum dos irmãos queria dizer ou acrescentar algo a mais. Os irmãos de André com suas cabeças baixas fizeram o silêncio se prolongar e desta forma se entendeu que nada seria dito. É óbvio que Ângela queria dizer muitas coisas, assim como sentiu no silêncio amargo de cada irmão seu, que muito também desejavam dizer algo. Mas ela não queria pronunciar seus erros para aqueles que estavam ali presentes, que pouco se importariam com o que ela aprendeu e que estariam mais preocupados em apontar os erros de uma família que estaria fadada ao fracasso, como se já tivesse nascido predisposta a isso. Apesar da aparência imponente e imaculada de muitos ali, Ângela sabia da vida e dos problemas pessoais de quase todos ali. Não sabia porque queria ou porque tinha procurado saber, mas sim porque sua mãe de criação Ivelise, tinha o péssimo hábito de expor sempre que podia. Ângela não ia permitir que a dor da sua culpa e a de seus irmãos trouxesse mais olhares acusadores, como foi com sua mãe. E os demais interpretando o silêncio dos quatro irmãos de André ali presentes, como um remorso ou vergonha, todos começaram a fazer suas orações, rezas e preces.

Durante este curto momento, Ângela não se deixou abater, olhou para cada um de seus irmãos com suas cabeças baixas e olhos fechados, e fixando o olhar em seu irmão André, sentiu um imenso orgulho acrescido de uma ponta de alívio de ter nascido no seio daquela família, ou seja, de sua mãe e de seus irmãos. É óbvio que não tinha orgulho das brigas entre seus irmãos e tão pouco da vida que André levara que acabou por levá-lo ao trágico fim que tivera. Mas, sentia-se orgulhosa sim, de tê-los como seus irmãos biológicos e de sua falecida mãe, a qual André era o mais apegado e mais querido por ela, e que nunca aceitou e nem soube lidar com morte dela. Por isso sua entrega ao mundo do vício, primeiramente à bebida e em seguida às drogas.

Ângela pensou que se pudesse fazer tudo diferente até ali, teria feito. Não fez, pôde aprender (ainda com a dura lição) que dali pra frente poderia consertar muitas coisas. E lançando seu olhar sobre todos e novamente sobre seu irmão André, pensou que se pudesse optar onde e em que família nascer, escolheria a sua atual. Teria escolhido com muito orgulho a mesma mãe, os mesmos irmãos, pois entre tantas outras coisas, no exato momento em que seus irmãos juntamente se calaram e não se pronunciaram, notou um puro e singelo arrependimento totalmente desprovido de orgulho ou remorso. Não houve lugar para as máscaras e nem tão pouco para discursos hipócritas. Sabia que esse tipo de coisa provém de corações limpos, simples sim, mas humildes também. Sentiu-se orgulhosa por estar no seio de uma família com defeitos sim, como qualquer outra, e que mesmo em meio a tantas dificuldades, suas verdadeiras raízes permaneciam ali. A simplicidade no coração e a humildade do ser. Era um “status” que homem algum poderia delegar a outra pessoa, era coisa de além da vivência sofrida, era algo muito mais forte, era feito um laço, era mesmo coisa de sangue.

Chegando por fim a hora do adeus definitivo, Marcelo que tanto chorou ao se despedir de André, mais tarde disse que não iria comemorar o seu aniversário que sucederia cinco dias depois. Todos os outros três irmãos se reuniram e reservadamente visitaram Marcelo no dia do seu aniversário e festejaram com ele. Levaram presentes, amigos mais chegados e um bolo com velinhas. Ele muito se emocionou e todos se emocionaram com ele. Com esta atitude estavam dizendo à morte que ela teve a sua vez e foi respeitada, mas muito mais respeito, a partir daquele dia seria dado à vida, principalmente à vida daqueles a quem tanto amavam e só perceberam a força desse amor, depois que perderam um ser que não sabia ser tão querido. Aliás, nem eles mesmos sabiam o tanto e quanto o queriam bem...