Senilidade

Como poderia ser isto? Agora mesmo olhei e julguei ver bem, vi o relógio antigo de mamãe, que estava atrasado alguns minutos por falta de darem-lhe a corda. Agora o móvel está vazio, só um tecido bordado à mão jaz sobre ele. O relógio se fora. Notei mais alguma coisa diferente, mas não consigo me lembrar agora.

Acho que estou tendo lapsos de memória, também, minha idade já é mais avançada do que eu possa suportar. Os anos se amontoam sobre mim quase me esmagando. Vivi tantas coisas, mas pensando sobre elas agora, parece que ainda foram poucas.

- Onde está o relógio da mamãe?

- Qual relógio, tia?

- O que fica sobre aquele móvel ali.

- Nunca houve um relógio ali tia, desde que eu era criança que o móvel está exatamente igual.

- Mas costumava ficar ali o relógio da mamãe, será que roubaram?

- Não tia, isso faz muito tempo, com certeza esse relógio não existe mais há décadas.

- Que isso menina, ele estava ali agorinha mesmo. Acabei de ver, a mamãe deve ter tirado para dar corda, estava precisando mesmo.

- Não tia, a sua mãe já morreu faz mais de trinta anos, não se lembra?

Uma tristeza profunda me abate, ela estava certa, como se eu acabasse de acordar de um sonho, mergulho direto na realidade, minha mãe morreu há muito tempo e eu estou sozinha, o antigo relógio há muito tempo foi guardado junto com as coisas antigas, que não funcionavam mais. Me sentia prestes a ter o mesmo fim do relógio de mamãe.

- É mesmo, acho que estava com a cabeça no passado...

Minha sobrinha, que está aqui para cuidar de mim, me olha com piedade. Finjo que não percebo e peço um copo de água. Enquanto ela vai buscar, fico imaginando se meus filhos, se eu houvesse tido algum, me olhariam assim também. Seria diferente? Não estou reclamando, ela cuida muito bem de mim, melhor do que eu sequer sonharia. Como eu iria prever que viveria até os noventa e quatro anos e precisaria de cuidados constantes? Pois agora eu me arrependo de não ter previsto.

- Aqui sua água. É bom a senhora tomar tudo, faz bem pra saúde, e a senhora quase não toma.

Peguei o copo com as mãos trêmulas, não tinha mais forças, mal conseguia segurar corretamente o copo, tudo o que eu fazia agora era com uma lentidão absurda, que eu não aguentaria nem assistir muitos anos atrás. Engoli com dificuldade alguns goles de água, não caía bem em meu estômago, na verdade, nada mais caía bem em mim atualmente, tudo me fazia passar mal, não havia um minuto sequer em que algo não me incomodasse. Já estou acostumada.

- Oi tia, tudo bem?

Com um susto, percebo que minha sobrinha neta está me cumprimentando.

-Oi querida, vou indo como Deus permite... Onde está a sua mãe, ela estava aqui agora mesmo...

- Ela já foi embora tia, já é de noite.

- É mesmo? Nossa, nem percebi, o tempo passou rápido... Que dia da semana é hoje?

- Quarta feira. A senhora já tomou café?

- Não sei... Não me lembro... Acho que não, mas não tenho certeza.

Enquanto ela vai até a cozinha preparar o café que tomo todas as noites antes de dormir, uma sensação de desesperança me invade, estou perdendo o controle de minha mente aos poucos, já estou cansada dessa vida, mas tenho medo do que acontecerá na minha morte, será que vai doer? Será horrível? Ou talvez seja maravilhoso. Não dava para saber. Só esperando para ver. Não poderia demorar muito mais agora. Eu estava pronta e esperando já há muito tempo.

Comi o bolo e tomei o café com leite de sempre e já não sabia mais se era de dia ou de noite, arrisquei perguntar:

- Que horas são meu bem?

- Quase dez.

- As empregadas estão demorando pra chegar hoje.

- Dez da noite tia, elas já vieram e já foram embora.

- Ah é mesmo... Que dia da semana é hoje?

- Quarta feira tia.

- É mesmo... Eu já havia perguntado né, me esqueci.

Não conseguia dar uma dentro mais, por mais que eu me esforçasse para parecer sã e equilibrada, minha sanidade escapava por entre os meus dedos, eu percebia, mas não dava o braço a torcer. Olho para dentro de um quarto aqui perto e pergunto por que a luz daquele quarto está acesa se não está sendo usado.

- Não é um quarto tia, é o reflexo deste quarto no espelho. Olha...

Minha sobrinha neta bate no vidro do espelho e me faz cair na real de novo, estava enxergando outro quarto, dentro do espelho e nem percebi. E pela expressão do rosto dela, eu já havia me enganado assim antes. Como eu queria ter o controle sobre mim mesma. Como eu queria me lembrar, guardar os nomes, saber se acabei de urinar, ou quando tomei banho. Estava totalmente dependente, tanto física como mentalmente. Eu sabia, mas não daria o braço a torcer, fingiria estar no controle até o fim.

Priscila Pereira
Enviado por Priscila Pereira em 27/05/2014
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