Noites de Inverno
 
 
A ausência de forro no teto  e de vidros nas janelas  tornavam os dias de inverno insuportáveis naquela pequena casa construída às pressas para abrigar a família, era vento que vinha de todo lado fazendo  tristes sons, assovios, lamentos.

Poucas cobertas,  momentos difíceis amenizados pela prece diária  quando reunidos rezavam a Ave-Maria com o locutor que diariamente as seis anunciava o momento de fé.

As crianças  queriam entender, mas a pouca idade nãos lhes permitia, apenas percebiam  a repentina dificuldade que assolara a família.

Após a prece amontoavam-se no único sofá  para diminuir o frio, até porque os agasalhos era insuficientes.

Ao cair da noite a mãe acendia as velas, ou o único lampião de gás, logo o pai chegava cansado da lida.

As crianças  desenhavam sombras nas paredes sem reboco da minúscula casa, construíam histórias, criavam mundos,  brincavam felizes indiferentes às dificuldades que não eram poucas.

Mas o implacável inverno  causava-lhes  dores nas costas diante de tanta contração pela falta de cobertores, congelavam os pés, e no dia seguinte a sensação de que ninguém havia dormido.

No fogão de lenha a água aquecida para o desconfortante banho de bacia. Água fria, banheiro gelado, piso impossível de se tocar...

Às vezes  as chamas do fogão de lenha  vinda do improvisado fogão no puxadinho amenizavam o frio cortante.

Como um timoneiro a conduzir o barco a mãe amorosamente semeava a esperança no coração dos pequenos, dizia que tudo era transitório, que passaria, que todos venceriam.

Não um vencer de vitória para se amealhar status, dinheiro ou poder, mas um vencer de quem compreende através da fé que não há mal que dure.

Todas as noites as crianças a viam  sob a luz das velas lendo uma parte do santo evangelho.

Ainda assim eram felizes, porque a fé, o amor fraternal e o espírito cristão os tornavam assim.

Após a  Ave-Maria,momentos de indescritível felicidade. A família se reunia ao redor da mesa quando a mãe lhes servia a fumegante  sopa de macarrão padre-nosso  com feijão e batatas.

Durante todo o inverno este era o prato servido no jantar, uma vez ou outra com pedaços de carne.


Foram cinco anos sob a luz e um lampião, da casa sem forro, de cobertas  poucas, de inverno cortante,  cinco anos de dificuldades enfrentados com dignidade e fé.

Localizando no tempo, tais fatos se deram  entre os anos de 1961/1966, portanto  há  quase meio século.

As dificuldades foram gradativamente superadas.

As profecias daquela santa mãe se concretizaram.  A bíblia respingada de velas ainda existe.

Do pai  os filhos guardam na lembrança a imagem de um homem  pacífico,, extremamente honesto, amante da música sertaneja,  há pouco mais de 20 anos habita a morada eterna.

Acabaram-se as velas, apagaram-se os lampiões, passaram-se décadas.

E no voar do tempo a mãe guerreira, mulher de fé, defensora dos oprimidos, cristã, simples, solidária, que de tão forte parecia eterna à  pouco mais de um ano também se foi.

Deus lhe permitiu ver os filhos formados, os netos encaminhados e a chegada do primeiro bisneto.

Até o fim de seus dias  ensinou  não somente aos  filhos, mas para todos que tiveram a oportunidade de conhecê-la a importância do perdão e da caridade.

Pouco antes de falecer, indagada  por uma das filhas  qual seria a sua mensagem de ano novo, isso no início de 2013, esta sem pensar respondeu – São apenas duas palavras, Perdoar, Sempre.

Nesta noite de inverno, cheguei um pouco mais tarde do  que do costume do trabalho diário, como que no automático  senti vontade de preparar aquela sopa, senti o aroma, o calor da família, a saudade, revivi as lembranças de que mesmo nos períodos de extrema dificuldades o quanto fomos felizes.

Quantos atravessam dificuldades semelhantes nos dias atuais, como é importante se compartilhar, se socorrer na medida do possível aqueles que necessitam, pois nestes gestos reside o espírito cristão.

Enquanto preparava o jantar estas lembranças povoaram minha  mente, uma infinita saudade se fez presente, senti vontade de escrever, de  compartilhar, porque aqueles que se envergonham do próprio passado não merecem  a felicidade no presente.

 Mas refletindo sobre as sopas daquela época, não eram definitivamente qualquer uma,  em cada noite de inverno, ao redor da mesa sob a luz de um lampião  ou das poucas velas, a hora da Ave Maria , a prece diária,  lembranças que brotam em meio a gratidão por tudo o que os meus pais fizeram por nós, os três filhos.

A saudade aperta e as lembranças ganham vida em  cada momento descortinado, e de repente estampa no coração a sensação de o quanto foram  felizes aqueles anos, em que tanto temíamos o inverno.


Ana Stoppa

 
Ana Stoppa
Enviado por Ana Stoppa em 28/07/2014
Código do texto: T4900653
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