DOIS TANGOS

Eu não estava morrendo , mas vivia entre pessoas que estavam . Tinha quinze anos quando fui sentenciado a prestar serviços comunitários por explodir o banheiro da escola com um rojão . Poxa , eu nem sabia que isso era possível . Faltava pouco para o sinal bater e os alunos descerem para a cantina . Foi ai , como um pré aviso , que ouve o estouro , meus pais tiveram de pagar pelo vaso e as janelas quebradas . O juiz decretou a sentença , fui expulso , perdi direitos que tinha e precisei arranjar um emprego . Agora , meu dia estava cheio . As horas não eram suficientes . Estudava pela manha e trabalhava a tarde embalando compras no mercado . Usava um uniforme cafona laranja com gola polo e calças largas . Uma vez por semana era dispensado do trabalho e ia para o centro comunitário , ajudava no jardim , limpava os banheiros e dava de comer para velhos . No centro comunitário fazia de tudo um pouco , ouvia historias tristes dos senhores e senhoras deixados para trás por seus filhos . Eu tentava anima los .

- Tenho certeza que a senhora esta melhor aqui , eu falava . Mas era claro que eu não acreditava nisso . O lugar fedia a urina , e por mais que os lençóis fossem trocados diariamente os quartos nunca cheiravam bem . O jardim era o único lugar que não fedia , mesmo com toda aquela merda de galinha que a gente jogava nas plantas para adubar . Na verdade , quem deixava tudo bonito daquele jeito era o Sr Lourenço , o jardineiro . Eu só carregava as ferramentas , arrancava pragas, coisa pequenas , nada que ajudasse de verdade no quadro que era olhar para o jardim pela janela da sala de leitura no segundo piso . Lourenço não ia muito com minha cara , porque claro que ele sabia o que eu tinha feito com a privada - todos ali sabiam – mas não era só por isso que ele não gostava muito de mim . O problema foi minha boca grande . Vivo falando besteira , e certo dia sugeri a ele jogar um pouco da merda de galinha na refeição dos velhos para ver se eles não ficavam mais espertos , mais bonitos e vivos como as rosas no jardim .

- De uma olhada nesse girassol , falei , esta lindo assim graças a todo esse coco , da para acreditar ? Poque não botamos um pouco disso no café da manha daquela senhora que vive de frente para a TV assistindo reprises de novelas ?

O sr Lourenço , apesar de não gostar de mim , nunca havia me olhado daquele jeito . Seus olhos castanho e seu narigão turco ficaram ali me fitando por um longo tempo antes do seu corpo magro e corcunda se levantarem e seguirem para dentro da diretoria . Pouco tempo depois fui chamado pelo Diretor , que me deu um esporro , jogou na minha cara que estava me fazendo um favor em me deixar lá enfiando a mão em titica de galinha e tudo mais . Lourenço permaneceu mudo ao seu lado durante todo o tempo . A partir daquele dia eu não podia mais entrar no centro comunitário , teria de ficar no lado de fora , fazendo serviços externos . Minha nova função foi pintar toda a quadra poli esportiva , includindo as traves e os vestiários . Não adiantou nada explicar que era uma brincadeira , que eu não iria fazer isso . O que vocês pensam que eu sou ? No final das contas a tal senhora da TV era a mãe do jardineiro . Piada errada com a pessoa errada . Claro que eles me mandaram para o psicologo , duas sessões semanais . O que me tirava do trabalho no mercado por duas horas da semana . Os outros embaladores de compra me botaram um apelido , Turista , era assim que me chamavam , pois passava mais tempo fora do que dentro do lugar . Isso não me ajudou a fazer amigos , e em especial o garoto que embalava ao meu lado , Vitor , me odiava , porque era ele quem ficava encarregado do meu caixa quando eu estava fora. Vitor era um garoto grande para sua idade , tinha o quase o dobro do meu peso e era um ano mais novo . Era um ladrãozinho , no banheiro do mercado vivia mastigando barras de chocolate que roubava das prateleiras . Nunca contei nada a ninguém , e não porque ele me ameaçava , mas sim porque não sou dedo duro . Nem mesmo quando o peguei murchando os pneus da minha bicicleta na hora de ir embora o dedurei . Ele devia ter seus problemas , todos tem o seu . E eram nos meus que minha psicologa focava toda vez duas vezes por semana . Tatiane era o nome dela – nome estranho para uma doutora – conversava comigo sobre tudo . O que eu estava achando da escola nova ?

- É legal , eu dizia .

- Legal como as outras ?

Naquele ano eu já tinha passado por três escolas , ela disse que minhas opções estavam acabando , mas eu já tinha ouvido a mesma coisa dos meus pais .

- E o trabalho no mercado , esta fazendo amigos ?

Minhas consultas era antes do trabalho , então eu ia a elas com meu uniforme laranja e calças folgadas . Disse que estava indo bem , o problema eram os clientes que nunca estava satisfeitos com a forma como suas compras eram embaladas . Queriam uma sacolinha para o sabonete e outra para a pasta de dentes .

- Ta na cara que eles fazem isso para não precisarem comprar sacos de lixo . Senão , porque alguém iria querer tantas sacolinhas ?

Doutora Tatiane – ela deixava as pessoas a chamarem de Tati , mas eu achava isso intimo demais para a relação paciente /doutora - anotava tudo que eu falava na sua prancheta . Enquanto isso dava para ouvir conversa dos outros pacientes aguardando do lado de fora . Dava pra ver que sua agenda era bastante cheia , porque atendia o pessoal do Serviço Publico de Saúde . Tinha muita gente jovem , da minha idade que se consultava com ela . Uma geração inteira de crianças atormentadas , ou que os pais achavam que eram atormentadas .

Não tinha nada a ver , mas Tatiane nunca deixava de perguntar sobre meus pais .

- Eles são legais .

- Legais ? Ta bom . Não tem nada mais para dizer deles , afinal de contas , são seus pais ?

- Bom , o que mais posso falar ? Não tenho nada do que reclamar deles . Eles fazem tudo que bons pais devem fazer , até estão perdendo a paciência comigo .

Não sei se a doutora sabia - mas acho que sim pois eles tem que saber esse tipo de coisa - que eles não eram meus pais de verdade . Não que eu estivesse reclamando , pois para mim eram , mesmo que o sangue diga o contrario , meus pais . São deles as primeiras lembranças que tenho , já que não da pra lembrar do parto . É do perfume da minha mãe não de sangue que gosto , a forma como tempera a comida é demais , o jeito que esfrega minha cabeça quando volto da escola é o que me deixa nervoso . Ela sabe mais coisas sobre mim que minha mãe de sangue , qual nem sei a cor dos olhos , qual não tenho uma foto na carteira , qual nunca me botou para dormir ou me deu uma bronca por molhar todo o banheiro na hora do banho . E meu pai ? Meu pai não de sangue ? Dele falo mais tarde ,mas dele por ele que sinto respeito e tenho orgulho de chamar de pai . Disse tudo isso a doutora , menos a parte deles não serem de sangue , mas ela , pela cara , já sabia .

O pessoal do centro comunitário me deixou pintar a quadra toda sozinho . Uma quadra poli esportiva tem tantos riscos e divisões que me deu um trabalhão . Eu não tinha a miníma ideia de como deviam ser feitos os traços , então tive bastante cuidado para seguir o que já estava la ,o que por sinal me deu um tremendo trabalho , porque estava tudo muito apagado . Antes precisei varrer tudo , lavar , esperar secar . Tava na cara que ninguém usava a quadra a anos , afinal de constas aquele lugar não era um ginásio . Lourenço ficou encarregado de me vigiar , era ele quem checava de hora em hora se eu estava fazendo tudo direitinho . E bastava uma linha um pouco torta que lá estava ele me dizendo o quão inútil eu era para isso e para aquilo . Levei quatro dias para pintar toda a quadra e os vestiários . Dava para fazer em menos tempo , mas eu tinha de ajudar no jardim e tirar o lixo também . Mas falando sério , se pudesse escolher eu preferiria pintar mais duas quadras a continuar me consultar com a psicologa . Aquilo não estava levando a lugar algum . E as vezes eu tinha que ficar aguardando com toda aquela gente com problemas visivelmente mais sérios que os meus , e ouvir o papo deprimente de auto ajuda e religião . Ali no corredor de espera estavam reunidos os dependentes químicos , os maniacos depressivos , gente com aparência estranha de maluco que viviam com tics na cabeça ou nos pé.

Mas um agarota me chamava a atenção . Eu não sabia seu nome porque ela não conversava com ninguém . Mas tinha a pele pálida e olheiras escuras debaixo de cada olho . Seus olhos eram verdes , mas era tristes e sem vida , os olhos verdes mais tristes que já vi . Uma vez me sentei ao seu lado . Ela tinha os pulsos enfaixados , perguntei se ela estava querendo se transformar numa múmia , mas nem deu bolas . O cheiro dela era estranho , lembrava o cheiro dos velhos do centro comunitário misturado com cereja . Fios dos seus cabelos negros caiam sobre seu rosto esbranquiçado enquanto o restante era amarrado num rabo de cavalo . Não sei se era tic , me pareceu mais impaciência comigo ali do seu lado , mas não parava de bater o pé direito no chão , como se estivesse marcando o tempo de uma musica . Fiquei quieto para não chateá-la mais . Agora era eu quem começava a ficar incomodando sentado ali , mas não tinha lugar livre no corredor , a doutora era bastante popular . Quando a mulher careca e magra saiu da sala da doutora foi a vez da garota das faixas entrar .

- É sua vez , Samanta , vamos entrar , disse Tatiane segurando a porta aberta para a garota .

- Foi um prazer conversar contigo , falei , antes da menina se levantar , mas tudo que ela soltou foi um gemido , como se sentisse dor , e a doutora a ajudou se levantar e tudo mais . Foi ai que esse sujeito que não tirava o sorriso do rosto veio com papo pra cima de mim . Sujeito estranho esse , porque começou a falar de futebol e apostas , tudo sorrindo . As gengivas dele eram enormes e rosadas , os dentes muito pequenos para a boca que tinha .Queria saber a minha opinião sobre o campeonato nacional , quem venceria ?

- Vai fazer uma aposta baseado na minha opinião ?

Ele sorriu , agora abriu os lábios de verdade , um enorme e monstruoso sorriso mudo .

- Sou um apostador compulsivo , disse ele para a seguir se apresentar .

Apertei sua mão quando disse seu nome .

- Me chamo Jorge , falou .

- Legal , Jorge, então esta aqui por causa das apostas ?

Ele riu , ainda mais , mas agora deixou sair a gargalhada. Disse que seu problema era ser muito alegre , as apostas eram um hobby de azar seu .

- Mas qual o problema de ser muito alegre , afinal ?

Segundo ele , isso incomodava as pessoas , as deixavam sem jeito . Eu sabia o que ele estava falando , mas fingi não compreender para não parecer grosso .

- E você , qual seu crime ?

Contei toda a historia da privada , da explosão , do serviço comunitário . Ouviu tudo sem tirar o sorriso do rosto , o que me fez em determinado momento rir também .

- Acredita que falei ao jardineiro que serviria titica de galinha a sua mãe ? - eu estava rindo nessa parte , nos dois estávamos- É por isso que estou aqui , Jorge , por uma piada idiota num momento errado .

Com o tempo Jorge se mostrou ser um sujeito legal . Gostava mesmo de futebol e apostas . Sabia quem iria ser rebaixado mas tinha suas duvidas a respeito do campeão . Foi quando entravamos num acordo a respeito da melhor zaga para a seleção que a porta da doutora se abriu , Samanta saiu da mesma forma que entrou . Lhe dei um tchau quando passou por nós desviando dos pés e pernas espalhados pelo corredor , mas ela nem deu bolas . Fui o próximo .

A doutora fez todas as mesmas perguntas de sempre . Trabalho , deveres , amigos , trinta minutos ouvindo as mesmas respostas da minha parte . Era o mesmo que atuar , dois atores sentados de frente um para o outro . Contei a ela sobre a quadra , sobre o trabalhão que deu para pintar tudo .

- Esta gostando do lugar ?

- Não é de todo mau . As pessoas não são ruins por lá . O Diretor , bom , eu entendo que ele tem de ser durão , porque no final das contas tudo cai no seu colo , qualquer coisa que aconteça e tudo mais .

A doutora Tatiane parou um pouco , estava pensando , depois abriu um sorrisinho .

- Se pudesse sair de lá , fazer outra coisa até acabar sua sentença , o que me diria ? Gostaria disso ?

Eu tinha puco mais de dois meses para cumprir , e já estava habituado a rotina. Continuar mexendo com esterco parecia a coisa certa a fazer .

- Não precisa responder agora , pense até nossa próxima sessão .

Aquilo havia me deixado curioso . Quando estava para sair ela me chamou , pediu que chamasse o próximo .

- Claro , e quem é ?

Era o apostador , o do sorriso fácil . Perguntei o problema dele ?

- Não sei porque uma pessoa que esta sempre feliz tem de passar por consultas o que há de errado nisso ?

Mas vocês sabem como funciona , ela não pode falar a respeito . É aquele negocio de sigilo entre paciente e medico . Entendi , porque não gostaria nada de saber que ela esta contando para as amigas sobre tudo que conversamos , se bem que não teria motivos para fazer tal coisa . Claro , a não ser que fosse uma solteirona sozinha com amigas estranhas .

31/07/2014

15h45m

Cleber Inacio
Enviado por Cleber Inacio em 31/07/2014
Código do texto: T4904239
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