DOIS TANGOS ( II )

A escola nova não era ruim , não era diferente das outras por qual passei naquele ano . Até mesmo uma das professoras , a de português , era a mesma da escola antiga . Quando me viu chegando e me acomodando numa das cadeiras a primeira coisa que ela fez foi perguntar se eu estava naquela escola . Bom , uma pergunta bastante boba para alguém que se orgulha em ter um diploma . Fiquei bem de frente para sua mesa , diferente de antes . Fiz isso porque o diretor me pediu . Sentada ao meu lado estava Margarida , a tipica cdf da classe . Usava óculos fundo de garrafa e seu cabelo era seco e longo . Quem puxou assunto primeiro foi Margarida , ela vivia pegando meus lápis emprestados , e na hora dos grupos de trabalho formávamos uma dupla . Todo resto da sala se juntava em grupos de cinco ou quatro , mas nós dois preferíamos formar uma dupla . Em matemática eu não era de todo ruim , ao ponto que em historia as datas fugiam de minha cabeça . Nos completávamos nesse ponto . E o fato dela gostar de Stephen King a tornava a única pessoa interessante na sala , ao meu ponto de vista , para conversar . A chateação vinha por parte dos outros alunos . Eles nos passaram a chamar de Casal Aberração . Uma cdf sem amigos e um forasteiro que foi expulso das ultimas três escolas por qual passou , eramos a piada da classe , a piada que nunca perdia a graça . Mas Margarida não dava bolas , na verdade parecia gostar das brincadeira , ao ponto de corar e sorrir quando um cara , o tipo popular e esportivo da classe passava por nós e abraçava a si próprio , ficando de costas para nós como se outra pessoa estivesse o envolvendo nos braços .

- Qual o problema desse cara ? Eu perguntava a ela .

- Seria mais fácil listar os que ele não tem .

Meu pai não de sangue me levou até sua casa para terminarmos o trabalho de física uma tarde . A noite já vinha caindo , ficando cada vez mais fria . O inverno naquele ano estava especialmente mais frio que os outros . Margarida disse que era essa coisa do aquecimento global , as geleiras derretendo e tudo mais . Seus pais atenderam a porta quando bati . Sua casa era estranha ...não , estranha não é a palavra , diferente e o adjetivo correto , tanto para sua casa quanto para seus pais . Um pouco excêntricos , os anos setenta ainda não haviam passado para eles . Foi pai quem atendeu a porta , era calvo na frente e cabeludo atrás , com roupas largas e coloridas , com muito destaque para o laranja . O pai usava os mesmos fundo de garrafa da filha . O tapete da frente era uma mistura de cores , como houvessem esparramado um monte de baldes de tintas diferentes no chão . A mãe era a versão mais velha de Margarida , tirando o fato dela não usar óculos . Mas todo o resto estava ali . Se vestia um pouco menos colorida que o pai ,mas ainda sim nada discreto . Ela preparava pizza de espinafre , ou seja o que for , quando passei pela cozinha .

- Ola ! Disse ela quando me viu .

Acho que Margarida não recebia muitas visitas , porque seus pais foram de todo gentis comigo , e até fizeram piada com a historia da privada .

- Oooh , garoto ,lembro bem dos meus tempos de juventude . Eu era um rebelde sem causa até conhecer essa linda mulher aqui . Ela me salvou …

Margarida apareceu cortando o papo do pai . Ela me pegou pelo braço .

- Vamos indo , se deixar eles falam a noite toda …

- Bons estudos para vocês , crianças , disse a mãe , com um punhado de coisas verdes na mão , e deixem a porta a berta , sim ?

- Foi um prazer , falei , já sendo puxado para os degraus a caminho do quarto . O quarto de Margarida ficava no sotao ,e digo que era bastante diferente do que eu poderia imaginar . As paredes forradas com pôsters de bandas de rock , tinha incenso aceso que me sufocou um pouco . Percebendo meu desconforto ela abriu a janela . Seu jeito de agir fora da escola também era diferente , usava os longos cabelos soltos , e eles até pareciam mais hidratados , vestia camiseta amarela do Bob Esponja e shorts que terminavam em seus joelhos ossudos deixando a mostra as canelas brancas . Nos sentamos na cama , ela sorriu abrindo os livros .

- Então , por onde quer começar ? Falou .

- Que tal por esses posters colados na sua parede ? Não sabia que você gostava de Vega 4 .

Pareceu ficar meio constrangida , não sei porque , completei dizendo que também gostava .

- Sabe , seus pais parecem legais .Parecem do tipo que não vão encanar quando você chegar bêbada em casa ou passar a noite fora sem avisar .

- QUERIDA , O SEU AMIGO VAI FICAR E JANTAR COM A GENTE ? Gritou a mãe la de baixo .

Margarida gritou em resposta que não sabia . Tomei um susto , nunca a tinha visto gritar , estava sempre falando baixinho como se aquilo fosse um pecado .

- ENTÃO PERGUNTE A ELE PARA EU POR A MESA !

- E ai ? Se importa em comer mato ? Meu pais são vegetarianos , então tudo o que você vai encontrar na cozinha e verde .

- Você disse que seus pais são , e você ? Perguntei .

- Desconfio que eles saibam que sou uma assassina de galinhas , mas nunca me disseram . Então , fica e poupa algumas vidas hoje ?

Concordei com um sorriso , para em seguida Margarida gritar:

- TA LEGAL , MÃE , ELE FICA !

Sentia bastante frio . Minha camisa xadrez não estava dando conta de me aquecer , mas não falei nada sobre a janela aberta . Margarida parecia bem , não usava blusa , mesmo assim não sentia frio . No final das contas quem fez a maior parte do trabalho foi ela , restando para mim fazer a capa e revisar .Eu também não era bom em física .

O jantar foi animado . Os pais de Margarida disseram que foram hippies na juventude . Omitiram qualquer papo com relação a LSD ou maconha, bem como Margarida havia dito que fariam . Mas ela sabia que isso não significava que eles nunca tivessem usado .Um dos seus tios , irmão mais velho do seu pai , já lhe havia contado historias do irmão de quando eram mais novos , de como o pai costumava ver coelhos de um metro e oitenta e da banda que tinham . Tocavam musica Celta , flautas e esse tipo de coisa .

Eles comiam muito tofu , que no final das contas me pareceu queijo de soja . Não era bom , mas quando a mãe perguntou o que eu tinha achado disse que era dez !

- Querido – disse a mãe , que estava sentada ao lado do pai – acho que estamos criando outro vegetariano aqui .

Margarida que estava ao meu lado cobriu a cara , como se estivesse envergonhada dos pais , mas não estava . Só fazia o papel da filha .

- Sabe filha, quado conheci seu pai era apenas um pouco mais velha que você . Quantos anos tem menino ? perguntou a mãe olhando para mim.

- Mãe ! Falou a filha entre os dentes .

- O que foi , filha ? o amor é algo lindo que deve ser propagado , não importa a idade …

- MãNHEE !!

Essa família era um barato , todos alegres e gostavam tanto de conversar que a comida chegou a esfriar nos pratos . Estávamos todos sentados na sala assistindo a um show antigo do Led quando meu pai chegou .

- Foi um enorme prazer , garoto , volte sempre que quiser , disse o pai , apertando minha mão .

A mãe me deu um abraço , depois me entregou um topware cheio de tofu . Margarida me acompanhou até aporta , estava nervosa , parecia esperar algo .

- Até amanha ?

- Claro , até amanha , disse ela , para depois me ameaçar . Se contar o que viu aqui nessa casa para qualquer um na escola eu te mato .

Lhe dei um beijo no rosto antes de ir . No carro meu pai esperava orgulhoso .

- Então , filhão , como foi ?

- Foi legal .

- Legal , sei . Não tem mais nada para dizer ?

- Bom , eles comem tofu , parece queijo , mas não é muito bom .

Ele riu e deu a partida . Quando dobramos a esquina Margarida ainda esperava na porta , fazendo um tchau com a mão .

Meus pais entraram na sala , primeiro se mostraram aliviados, se sentaram no colchão plastificado do hospital e me abraçaram . Uma enfermeira esperava na porta , nos dando um tempo sós .

- Meu deus , porque fez isso , porque faz isso com a gente ? Ouvi minha mãe dizendo , com a cabeça enterrada no meu peito . Meu pai não de sangue não dizia nada , só me fazia um carinho na cabeça , tomando cuidado com os pontos . Por mais que minha cabeça estivesse doendo , não se comparava a sensação horrível de ver meus pais ali , preocupados e se culpando por uma burrada minha . A enfermeira se aproximou para depois se afastar novamente , agora acompanhada de pai e mãe . Na época eu tinha dez anos , e até momentos antes da tal burrada eu não sabia o que era adoção , não sabia que eu era adotado e que eu não pertencia aquela família . Meus pais nunca mais falaram do assunto , talvez eles achem que eu tenha esquecido , não sei , mas fazem apenas cinco anos , e me lembro de tudo . Lembro deles me levando de carro para casa , com o braço engessado , os pontos na cabeça , a sacolinha de analgésicos no banco traseiro ao meu lado , o silencio constrangedor até o carro estacionar na garagem e meu pai me carregar até o quarto para ouvir os dois dizendo o quanto sou importante para eles . Era noite , fazia frio , e mamãe me cobriu tomando cuidado com o braço e o gesso . Hoje , quando penso em tudo , parece que foi um sonho , porque dormi logo e quando acordei de manha eles agiram como se nada daquilo tivesse acontecido .

Doutora Tatiane ouviu tudo, anotou tudo , depois correu o dedo pela minha cicatriz na cabeça . Então , antes dela perguntar qualquer coisa , falei que aceitava o tal acordo .

01/08/2014

15h03m

Cleber Inacio
Enviado por Cleber Inacio em 01/08/2014
Código do texto: T4905576
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