Quero Escrever Sobre As Formigas Em Minha Mesa

Meu fone de ouvido foi vítima da mortal curiosidade de minha gata, Jade, que afiou as unhas nos auto-falantes. Minha mesa estava cheia de papéis, um controle remoto, o teclado do computador e... Formigas.

Elas começaram a aparecer aos poucos, em pequenos grupos de batedores, eram três, e ficavam andando pela superfície da madeira para lá e para cá, como se estivessem tontas, mas não, aquilo tudo era um movimento estrategicamente calculado. Elas faziam voltas, como rondas, avançando aos poucos, formigas minúsculas. Levantavam suas antenas, avançavam um centímetro e rondavam o lugar. Elas se depararam com um mosquito morto e ficaram interessadas, mas logo continuaram com o mapeamento do território.

Então, de súbito, viraram-se e partiram de volta para seu secreto esconderijo, a base de operações, que nunca encontrei. Atravessaram por cima do teclado do computador, pelo controle remoto, e pelos fiapos do fone de ouvido. Para debaixo do gabinete e fim. Não as vi mais!

Esquecido este assunto, fui até a cozinha pegar um pouco de chá gelado e alguns aperitivos. Quando voltei, haviam dezenas de formigas destroçando o mosquito morto. Um espetáculo da natureza! As maiores cravavam as pinças e destroçavam o pernilongo, as medianas e as menores, carregavam os espólios para o esconderijo, uma perna, uma asa, outra perna, a parte traseira (carregada por duas pequenas formigas). Tudo muito rápido e coordenado. Fascinante.

Não tive coragem de interromper, não tive coragem de usar minha própria mesa. Assistir as formigas foi mais interessante que um ano de reportagens e programas de auditório e novelas e receitas ensinadas por velhas que conversam com bonecos de borracha. A TV jamais conseguiria ser tão interessante quanto as formigas. A internet não possui a mesma mágica, ainda que seja, por e em todos os aspectos, infinitamente superior a programação da TV.

Logo não havia mais mosquito ou formigas. Me pareceu uma troca justa: Eu mato os desgraçados e vocês se livram do corpo, o que me poupa de varrer o chão depois. Pareceu o início de uma longa e próspera parceria. Eis que, de repente, me lembro de Bukowski em "Factótum" usando logo de cara uma citação de André Gide e aquilo tudo nunca fez tanto sentido.

E enquanto os dois são celebrados como gênios, na companhia de Kafka, Wilde, W. Butler Yeats, Maiakovsky e alguns poucos outros selecionados, eu, eu escrevo sobre as formigas em minha mesa e bebo chá gelado nesta fria noite do fim do inverno. E nada, absolutamente nada me parece mais interessante que contemplar serenamente estas minúsculas amigas, tamanha é a falta de sentido que tudo possui ou é possuído nesta ou por esta vida tão inventada, nem o amor, nem as mulheres, nem a bebida alcoólica, nem o fim do mundo que está próximo (segundo os irmãos evangélicos). Eu poderia estar expressando todo meu talento e inteligência através de textos metafísicos e cálculos e monografias e doutorados, mas sendo quem sou, quero apenas paz para escrever sobre as formigas em minha mesa, e essa é e sempre será a barreira que me separa dos grandes, dos gênios, perto deles, de Bukowski, de Kafka, Gide, Wilde, Saroyan e de Fante, sempre serei uma formiga.