Entre alpiste, biscoito e chocolate

O elevador desceu, trazendo do segundo andar, dona Beatriz e o marido apoiado numa bengala. Conduziam pequeno rádio de pilha, ligado em alto volume, e um pacote de biscoitos, deixando cair migalhas no tapete. Acordam muito cedo e todos os dias descem para tomar banho de sol na praça. Retornam se o calor começa a incomodar. Dezenas de passarinhos são alimentados com o alpiste que seu Olegário costuma trazer, em sacos de plástico, no bolso da camisa. Dizem precisar do barulho do rádio para diminuir a solidão. Gostam de contar a vida saltando de uma época para outra. Por serem tão antigos, permitem-se ficar de olhos fechados, silenciosos e anônimos, quietos como se não existissem. Ao mesmo tempo, em segundos, acordam, levantam-se e se fazem tão vivos que ninguém resiste às revisões da memória e às críticas deles.

Andam juntinhos, se amparando, nenhum passo diferente do outro. Eles mesmos cuidam do apartamento. Não precisam de criados. Morreriam de tédio se não fizessem nada. Antes de atravessar a calçada, se detiveram à minha frente:

– Josué, nesta madrugada deram um tiro aqui no prédio?

– O colega não me disse nada. Quando cheguei estava tudo calmo.

– Foi muito perto o estampido, ouvi do quarto.

Apoiados um no outro, atravessaram a rua e, envolvidos por pintassilgos e canários, sentaram-se no banco ainda úmido de orvalho.

Procurei me informar. Não havia acontecido nada. Deve ter sido sonho ou caduquice de dona Beatriz.

Apanho dois ônibus para chegar ao trabalho e substituir meu colega de portaria do Edifício Guaporé onde presto serviço há muitos anos. Desde a chegada dos primeiros condôminos. Dez andares acomodam quarenta famílias que, todos os dias, fazem o mesmo roteiro. Fiz amizade com os moradores e, pelo tempo de convivência, considero-me um deles.

No começo da construção ao lado, do St. Moritz, todo envidraçado e revestido de mármore, fiquei imaginando o luxo da portaria, cheia de espelhos e tapetes caros. Pelo estacionamento de carros podia-se perceber que os futuros proprietários eram ricos demais. Diante dele, a diferença do Guaporé era muito grande. Com o meu amor ao prédio, não sei se me acostumaria a trabalhar noutro lugar. Acostumei-me com os problemas e gosto das pessoas do edifício.

Hoje ao chegar separei a correspondência acumulada, recebi os jornais do dia e as revistas da semana.

Quase todos os moradores do segundo andar são pessoas idosas. Reclamam de tudo. Das jandaias, da costureira do 302 por não deixá-los dormir. Do barulho das crianças jogando bola no prédio e da pouca vergonha das moças nas poltronas da recepção. Isso é falta de pai e mãe, xingam, em voz alta, antes de entrarem no elevador.

O dia amanheceu com sol e tudo estava muito calmo. Deu-me sono. Doutora Edna voltou do plantão no hospital e parecia muito cansada.

– Tem correspondência?

– Pouca, doutora, já está separada.

Essa médica é meio esquisita. Às vezes chega de noite com um galego falando inglês, e, pela manhã, saem juntos. Nunca recebe visita de parentes nem amigos.

A empregada do 804, toda serelepe, me avisou:

– Está escorrendo água pela porta do apartamento do jornalista e já desceu pela escada. Bati na porta e ninguém atendeu.

– Seu André foi para Porto de Galinhas, o desmiolado parece viver no mundo da lua.

Já acontecera esse fato outras vezes durante o dia. Muito distraído, deixava a torneira aberta. Desta vez, porém, foi pior. Com os ralos entupidos e a água escoando por toda a noite, atingiu o 704 do coronel Cintra. Ele acordou com o apartamento inundado.

Tentei explicar que a torneira geral do conduto já estava fechada, mas ele não ouvia. Gritando, enlouquecido, ameaçava:

– Quero saber quem vai pagar pelo estrago do meu carpete!

Foi um Deus nos acuda até o síndico chamar os bombeiros, entrarem no apartamento e eu religar a torneira de passagem.

O 802, mais festivo, está sempre de luz acesa e, durante a noite, é frequentado por um grupo de pessoas alegres. No meio delas, um militar que sempre leva uma garrafa de uísque. Nunca o vi de farda. A música, em alto volume, incomoda os vizinhos. Vez por outra há problemas por causa disso. A dona do apartamento não paga as dívidas e, ao chegarem os cobradores, ela ameaça dizendo ser protegida do coronel do exército.

Apesar dos problemas, muito coisa divertida acontece na portaria. Do balcão, escuto conversas e sei de todas as ocorrências no edifício. Habituei-me até com o desconforto do ventilador que só funciona quando quer.

Todas as semanas dona Clara sobe para a aula de cerâmica no 502. Bem vestida e perfumada, prefere ir até o sexto andar e descer um lance da escada. Com certeza é para despistar. Outro dia me pediu:

– Se o meu marido aparecer, diga que ainda não cheguei.

– Mas a senhora não está indo para a aula de cerâmica?

Ficou zangada comigo e passa fingindo não me ver. A empregada do 604 afirma e diz para todo mundo dos encontros dela com um médico aposentado do 602.

Hoje vai ter festa no 802. O militar trouxe violão, outro rapaz um cavaquinho e a madame desde cedo, carrega bandejas com salgadinhos.

As maiores confusões do edifício ficam por conta da presença de animais e vagas nas garagens entre os pilotis. A moradora do 301 teima em criar um pequinês, ronhento e provocador. Vive mostrando os dentes e imagina poste em todo o lugar. Faz xixi por todo canto. Late como um desesperado. Se reclamo, a madame fica uma fera:

– Se a dona do 302 tem jandaia e o síndico um gato angorá, quem me impede de ter meu cachorro?

– Acontece, dona, que eles não fazem cocô no jardim nem xixi no capacho do elevador.

– Bicho é bicho. Se retirarem os deles eu me desfaço de Fly.

Essa senhora é uma velha ricaça, vive só, não tem criadas nem amigos. Anda sempre elegante e vive comendo chocolate. Entra e sai do edifício mastigando chocolate. Um bonitão a visita duas vezes por semana. Dizem estar de olho na herança. Ela vem trazê-lo até a porta do elevador e recebe um beijo na face espichada por várias plásticas. Já comentei com meu colega: qualquer dia esse esperto apronta uma com essa coroa. Hoje ela não desceu com o cachorro. Sofre de enxaqueca e, vez por outra, desaparece.

Quem passa pelo corredor do sexto andar pensa que está acontecendo alguma coisa. Ouvem-se gritos histéricos e batidas fortes; gemidos e cacarejados. São os alunos da escola de canto da professora Lucinda, no 602, fazendo exercícios.

Passam das dezoito horas e aguardo o colega para me substituir.

Do 801 desceu a jovem Clarice, vestida de noiva, com os cabelos longos presos pela grinalda. A saia larga ocupava todo o elevador e só havia espaço para duas pessoas. Estava pálida e parecia nervosa.

– Felicidades, dona Clarice.

– Obrigada, Josué. Estou torcendo por isso.

A portaria ficou perfumada com o cheiro gostoso. Se eu soubesse tinha feito uma limpeza no capacho para ela não sujar os sapatos brancos usados pela primeira vez.

Amanhã, será a reunião do condomínio e todo mundo vai saber quem está atrasando os compromissos. Muitas reclamações serão feitas, xingamentos, discussões e ameaças de despejo dos animais indesejáveis.

O colega chegou para render o meu horário. Estava nervoso e agitado. Peguei a sacola e me preparei para sair.

– Tudo bem, Geraldo, está aperreado?

– Mas ou menos, companheiro.

– Foi a derrota do Santa?

– Vou lhe contar um segredo, não suporto mais ficar calado. Está me torturando.

– Diga, homem.

– Ontem, a madrugada foi pesada. Um reboliço danado, mas tudo na moita. Escondido.

– Qual foi o mistério?

– A morte da senhora do 301. Aquela do bonitão. Do cachorro pequinês. Ouvi tiros, depois, gente descendo e subindo. Tudo na carreira. Ninguém soube aqui no prédio, eu estava sozinho na portaria. Me juravam de morte se falasse alguma coisa. E você vai ficar de bico calado, também, senão morre.

Voltei para casa pensando na pergunta de dona Beatriz.