QUASE NADA

Sempre vivera no porto a carregar e descarregar navios. Desde menino. Conhecia todas as ruas do bairro do Recife. Sabia da vida do mulherio em alvoroço a cada navio ancorado. Jovem, ainda, ganhara amores nas noites mornas, e tudo podia acontecer sem causar espanto. Ficava horas inteiras a ver o mar, onde gaivotas deitadas sobre as águas subiam e desciam com elas a saborear o abandono da liberdade. Encantava-se com as nuvens a saírem barra afora tangidas pelo vento, fechando o caminho à lua cheia.

Com o amanhecer, restava-lhe limpar o chão, arrumar os quartos, abrir as janelas para o sol esquentar as paredes frias. À noite, distraía-se com a música que ele próprio tocava, usando papel de seda enrolado num pente.

Fazia tempo não sentia tanta dor daquele jeito. Movia a perna esquerda como se arrastasse sessenta quilos. No quarto de depósito, a luz fraca de uma lâmpada ameaçava apagar, enquanto mariposas dançavam ciranda atraídas pela claridade. Amanhã vai chover, Quase-Nada. Por isso a perna doía tanto. Avisava a mudança de tempo.

Dor igual só quando teve a peste, bexiga-lixa. Matou gente feito mosca. Contava-se nos dedos um carregador sadio. Navios encalhados no porto sem desembarque. Escapara por milagre de São Severino dos Ramos. Fez promessa e alcançou a graça. Foi dado por morto. Não contou os dias passados coberto de chagas, nu, envolvido em folhas de bananeira, deitado em cama de lona, sem lençol, escondido em um mocambo, no Pina. Foi socorrido por pescador com a mesma doença. Delirava de tanta febre. Depois, o couro caiu e não ficou um lugar no corpo sem marca. Na sola dos pés, palmas da mão, no céu da boca. O lado esquerdo dormente.

Ao se levantar, fitara o espelho. Por um momento, julgou que os olhos estivessem fechados, depois, achou que não tinha olhos, pois entre as pálpebras estavam encaixadas duas coisas que pareciam dois blocos sujos, amarelados.

Durante muito tempo, andou sem vontade de viver. Voltou para o cais do porto. Por causa da perna, limitou o campo de trabalho. Viveu de biscates. Sem dinheiro, aceitava qualquer trabalho, por mais escuso que fosse. Com marginais, fez uma roda de amigos. Fuma esse cigarro, Quase-Nada, você vai se sentir outro. Gostou. Repetiu a dose. Quis ir mais além. Utilizava qualquer gorjeta para comprar um papelote. De pó em pó perdeu o rumo até sentir o cheiro da merda do mundo.

Passou um tempo sem dar sinal de vida. Mais de um ano. Tinha alucinações. Via bichos pelo quarto, árvores luminosas dançando, água saindo em cascata pela parede. Conseguiu livrar-se do inferno. Voltou para o beco.

Rosto sério, ossudo, olhos parados e vazios de toda expressão, como se estivesse longe, e ali restassem apenas o corpo encurvado, pés, braços longos, mãos descarnadas; cabelos encaracolados sobre as orelhas e, barba escassa em forma de ferradura. Face pontilhada de cicatrizes, feito quem recebeu uma carga de chumbo no rosto, os poucos dentes feios, escuros e estragados, escondidos na boca sem sorriso. Vestia camisa de malha desbotada e calças velhas presas por cinturão no pé da barriga. Não era homem de perder tempo com bons-dias e boas-noites. Cumpria obrigações, obedecia às ordens. Talvez ficasse alegre se tivesse alguém de mãos suaves que o apertasse contra o peito, lhe acarinhasse o rosto e o fizesse dormir um sono bom, sem os sonhos das noites na cadeia.

Numa sexta-feira de ventos cruzados, o sol amanheceu com o navio grego no porto. Bandeiras multicores de um lado a outro e no mastro principal, tremulando, o símbolo azul e branco da Grécia. Lindo. Gigante. Casco pintado de preto com letras brancas bem visíveis: Épirotiki. Ao redor dele, outros navios pareciam miniaturas. Barquinhos de brinquedo, a balançar, maneiros, empurrados pela brisa.

Em pouco tempo, a beira do cais ficou com cara de feriado e se encheu de colorido com as mulheres desentocadas. Não era costume saírem à rua durante o dia. Refugiavam-se nos quartos, vencendo o resto de sono, envolvidas em fumaça, cansadas da noite acordada, do hálito de bebida e da obrigação de rir; de deitar no peito de marinheiros salsos, avulsos, cheios de tatuagem, a sonharem com mares e sereias. Na metade da manhã, sem pintura, vestiam-se com roupas mais discretas e ficavam em volta de Dona Irineia. Ajudavam em qualquer coisa, faziam as unhas, ou folheavam revistas velhas.

Um navio daquele era acontecimento extraordinário, merecia comemoração.

Com o anoitecer, o Chanteclair se iluminou. Duplicaram o número de mesas e dobraram a quantidade de bebidas. Vamos, Quase-Nada, vamos olhar a dança. Olhar a gente pode.

O salão ficou pequeno para tanto galego de azul e branco com os braços enfeitados com âncoras, sereias e estrelas do mar. Meninas recém-chegadas, doidas para aprender o ofício, lábios de pitangas maduras, vestiam rendas e tecidos brilhantes, recendendo pó-de-arroz e perfume barato.

De repente, como se descesse do céu, ela surgiu com um corpete justo e saia bordada de estrelas. Dançava com o gringo, tentando acertar o passo desengonçado. Já um tanto bêbada e alvoroçada, mexia os quadris no esforço de acompanhar o ritmo da música. A radiola de fichas, no recanto da sala, incendiava em cores, num pisca-pisca contínuo, enquanto se desmanchava em boleros, sambas e blues para alegria dos aportados, a falarem difícil sem que ninguém entendesse nada. Fecha a boca, Quase-Nada, parece que nunca viu mulher.

Saiu ao terminar a festa com a noite morrendo em gás neon.

Como se um raio desabasse e o partisse ao meio, sem saber se anoitecia ou amanhecia, perdera muitas noites a pensar na mulher dançando; nos cabelos loiros, escorridos pelos ombros, pele de anjo, olhos azulados. Sonhava com os seios a despontar atrevidos pelo decote da blusa. Acendia os olhos lembrando as voltas da dança, o deixar à mostra um par de coxas cor-de-rosa. Vivia de olho arregalado com cara de doido. Morria de ciúmes sentindo o soluço descer de goela abaixo e louco de inveja dos marinheiros salgados ancorados, dormindo com ela. Passava horas vendo estrelas a cair no mar, até o sol surgir no céu feito uma bola de fogo.

Mudou-se para o velho casarão de telha vã. O puteiro de dona Irineia. Assim poderia ver todos os dias a mulher enluarada. Passou a se vestir melhor. Ficou ali, a postos, feito cão de guarda. Fazia de tudo para todo mundo, pela comida num prato de ágata descascado e pela sorte de usufruir daquele pé de escada. Era um corredor comprido com fila de quartos no primeiro andar e, no final deles, o sanitário. Atrás do pátio, ficavam a cozinha, o tanque e o depósito onde ele dormia. Rente ao muro, plantadas na areia fina, uma cerca de papoulas e espada de São Jorge. Em toda volta o cheiro de maresia, esterco e urina. Vez por outra, passava Irineia e o ar se enchia de um perfume como se tivesse derramado ao seu lado essência de barbearia. Mulher gorda, saltitante, cabelos desbotados, cor de palha, a se rebolar sobre pernas tortas. Usava fita vermelha em torno do pescoço e roupas coloridas. Com cremes e rugas havia se aposentado. Quisesse vê-la furiosa, pedisse uma cama sem percevejo.

Responsável pelo serviço pesado, Quase Nada acordava com um e outro raspar de pneu no calçamento ou com a voz rouca de um tresnoitado a cantar fora do tom. Levantava-se antes do sol clarear o mundo.

Doía-lhe o toc-toc de sapatos estranhos subindo a escada. Sentia-se barata numa teia de aranha. Fechava os olhos, vendo-a de cabelos soltos, camisola, boca semi-aberta. Imaginava-se no banheiro, abraçados, água correndo no piso de azulejo, sumindo pelo ralo.

Sonhava por uma noite. Só uma noite. Seria namoro, noivado, casamento, lua-de-mel. Não continha a vontade de levá-la vestida de véu e grinalda com botões de laranjeira para o beco onde morava até a noite da dança no Chanteclair. Viveriam tranquilos a vida toda se quisessem. A vida toda ou uma noite apenas.

Emoldurada pela porta, ela surgiu a rastejar a poeira dos chinelos. Recendia o perfume de jasmim, incensando o vão escuro sem janela. Com a voz morna de quem acordou de uma noite mal dormida, olhava-o com afeto. Está doente, Quase-Nada? Vai ali comprar um Hollywood para mim, por favor.

Sabia ser maternal e dócil, quando queria. Outras vezes, ao acordar pelo avesso, xingava os santos e a Mãe de Deus em espanhol. Dizia ter vindo de Granada, daí o sotaque meio carregado. Diferente das outras, tinha o ar de fidalga, de camuflados encantos. Charme só revelado na hora e diante de quem bem quisesse.

No aperto onde ela dormia, os lençóis revolvidos cheiravam a corpos suados; sutiãs e calcinhas se estendiam sobre a cadeira, cumplicidade na penumbra da cortina impedindo a luz do dia, enquanto o ventilador a bambolear no teto, incensava de colônia o ar do quarto pequeno no alto da escada. Mal cabia a cama, colchão de crina, forrado com desbotada colcha de retalhos cheia de pequenos retângulos multicores, desemparelhados. Na parede, o espelho sardento de ferrugem. Sobre a penteadeira, escova, pentes, batom, pó compacto, lápis de sobrancelhas. Um monte de essências espalhadas, alguns vidros secos.

Em noite sem movimento, sentada no tamborete, cruzava as pernas. O vestido apertado subia pelos joelhos, deixando ver um pedaço de coxa. A qualquer movimento, a renda da calcinha. Gostava de falar das histórias da terra de onde veio. De amores impossíveis e da judia de Zaragoza, que cegou chorando lutos alheios.

No degrau da escada, Quase-Nada não mexia um dedo, com a cabeça encostada no braço, aproveitando aqueles olhos de cobertor a envolver-lhe de ternura a solidão. Inflava o peito sob a camisa esburacada.

Ela apenas sorria. O mais doce dos sorrisos. Uma glória de mulher, andor de procissão. Não adiantava lavar o rosto. Encher os cabelos de brilhantina. Ela não ia notar. Parece a Virgem Maria, a Santa Mãe de Deus, amém. Você ficou doido, Quase-Nada? E ainda compara puta sem-vergonha com a Mãe de Deus?

Para ele, mais uma noite solitária. Fora de sentido. Noite de negrume. Teste de resistência no fundo do seu segredo, o coração latindo no peito. Disparado. A desejar com aquele desejo sem medida porque sem esperança. Jurava, um dia, matá-la. Uma só facada. A pior das mortes.

Diante dela permanecia ali feito escravo. Verme da terra. Esperando ordens para cumpri-las.