FORTUNA (Transcrição da canção "Domingo no Parque - Gilberto Gil")

Faltava um quarto de hora pro meio dia, o sol ardia no firmamento, e Zezé, na barraca de peixe, brincalhão e bondoso que só ele, cedia duas tainhas para o preto velho e coxo que ninguém queria perto.

- Cabra besta! Ond’é que já se viu? Assim tu num lucra!

Dizia o verdureiro avarento ao ver o feito, mas Zezé não se amofinava e rebatia com o eterno sorriso aceso enquanto ticava e elevava as orbes em prata no atrito da faca.

- Deixe disso! Vá pra lá com as suas sovinices! Um pacuzinho cá uma tainha lá … Mais tem Deus pra me dá.

E assoviava, com o talho ligeiro e aprumado, a canção dos sanfoneiros que animavam a lida num extremo da feira. Foi então que uma notícia o deixou afogueado. Formiga, menino arteiro, ligeiro, fazedor de recado pra todos, encostou o bucho no frio do balcão e debulhou:

- Ê, Zezé! Avia que Jão ta cum a mulesta lá pras banda de baixo!

E o peixeiro, num brandir com as mãos e cabeça para o vizinho verdureiro, corria acertando os passos nos desníveis dos paralelepípedos deixando a barraca aos cuidados do outro e trazendo a faca suja de vísceras no cós da calça (um costume seu). No pé da ladeira, com o sol a pino, Jão, o amigo de infância, Rei do sopapo e confusão, gingava os passos da capoeira não deixando que o adversário reagisse. Os cães ladravam e os curiosos se chegavam exclamando com as mãos nas cinturas e cabeças ante aquele rebuliço. Zezé, folgando na certeza de que o amigo jamais lhe relaria a mão, mergulhou no olho da cizânia e serenou tudo.

- Que rumação é essa aqui? Acabe já! – E o amigo, lustroso de suor do esforço explicava.

- Veje isso, Zezé. Desde novinho que mexo a massa e largo o reboco, e esse varapau metido a besta vem ensinar o gato velho saltar? Diabo!

E o magrelo, que mal havia chegado à cidade e fora buscar trabalho na construção junto de Jão, segurava o queixo e tentava argumentar choroso, mas o amigo Zé dizia imperativo traquejando com as mãos.

- Cabô a arengação! Ande você pra casa, avie! E tu vem mais eu. Bora batê um prato de pirão ali e assuntá.

E iam, lado a lado subindo a ladeira. Um bravio e grosseiro, o outro, amigo de todos. Juntos nos brinquedos e agora, no início da vida adulta.

- Ô, Jão. Tu num acha que ta baum? Caba cum essa marmotice, hôme. Te ajunta cu’ma cabrocha e quieta o facho! Um dia tu fica sem eu, e aí?

E Jão baixava a cabeça, não era mau, apenas não conseguia conversar como os outros, não se sentia bem quisto como os demais e mastigava todo dia o cansaço da lida deixando que as noite de capoeiraT na Ribeira levassem embora suas amarguras.

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De tardinha a feira se agitava murmurante e Zezé escutava restos de conversas das mulheres velhas e meninas moças.

“Domingo no parque, lá pra perto da Boca do Rio.” [...] “Domingo no parque, noite de dança”

O peixeiro, alegre, vendia cardumes e cardumes e ria com o tilintar dos cobres na algibeira, fazendo gestos de troça para o vizinho verdureiro sempre de cara amarrada. Mas Zezé não se demorou com aquela brincadeira, pois logo sentiu o arrebatamento ao ver Juliana, morena formosa guinando na curva com fartura de curvas vindo em sua direção.

A negociata foi diferente, os peixes enrolados em jornais foram entregues à morena com a promessa do passeio dominical. E quando veio o tímido assentimento e o distanciar buliçoso, Zezé assoviou imaginando beber quentão e dançar umbigada juntos no arraial.

Ê, Zezé brincalhão! Encegueirado de paixão. Não vendia mais nada cedendo tudo de graça e bailando com graça espezinhando as alpercatas no chão, impelindo sorriso da feira.

Na outra esquina, Jão. No mormaço do sol misturando grosseiro a massa na construção. Via a cabrocha de lábios encarnado serpenteando à ladeira com os cabelos entrançados, duas serpentes negras lado a lado, e tal visão o deixava atabalhoado. Os ouvidos o enganaram e escutou-a convidando-o para um passeio no parque.

- … domingo no parqueeee! Dançar na quermeeesse!

Ah, Jão… Rei da confusão! A Lordeza à cabeça ascendeu, o chapéu passou rés ao chão. Juliana na ladeira desapareceu, acenando pra amiga à janela da construção.

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No giro do dia os amigos Zezé e Jão suspiravam lado a lado biritando macio pra aliviar o duro labor. A feira se anoitava, os trabalhadores rumavam pra casa como numa procissão.

- Ah, Domingo é que vai ser baum! Tu tem razão, Zezé. Vô no rastro d’uma morena. Foi ela que me convidô prum passeio no arraiá.

E Zezé, surpreso com aquela revelação, aconselhava ao amigo, trocando as pernas no chão de terra batida.

- Oxente! Nada de capoeira, nada de confusão? Baum! Mas toma cuidado pra num ser biscate, mulher que se oferece…

- Ave Maria Zezé! Num é biscate não. É um baita peixão!

- E eu também, vô. Cum uma cabrocha formosa. Lá nós compara a belezura das duas.

E assim seguiam, com o sol se aninhando no horizonte, revelando seus Planos de Domingo e a fervura que traziam em seus peitos sem saber que aqueciam seus tachos no calor do mesmo braseiro. Jão não iria pra capoeira, mas seguiria aos pinotes a caminho do parque, e Zezé guardaria a barraca e viria o banho de “chêro” pra dançar coladinho mais Juliana.

Ê, Domingo no parque… Suor, sorvete e quentão! Diversão pra Morena Juliana e os amigos, Zezé e Jão.

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Mas no dia acertado, no tempo marcado, Zezé se atrasou. E a morena alegre aceitou o sorvete e o passeio na roda gigante com Jão. A roda girava e Jão apertava suave a mão de Juliana adornando-lhes os cabelos com uma rosa vermelha de amor. O sorvete escorria pelos dedos adoçando o momento festivo dos dois. O peixeiro Zezé de banho tomado exalando o odor da paixão; retirava sorrisos e dizia piadas no rumo do encontro com a ansiedade roçando-lhes as mãos.

Foi então que ele viu, ele viu Juliana na roda gigante ao lado do amigo Jão.

“O espinho da rosa feriu Zé. E o sorvete gelou seu coração”

O Domingo no parque perdeu seu mel. O sorriso eterno do rosto apagou. Zezé cambaleou no negror da traição relampejando a faca no arraial que se assustava ao ver morrer o Zezé brincalhão.

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O sorvete é morango. É vermelho! Oi, girando e a rosa. É vermelha! Trovejando Zezé, foi girando! Oi, a faca brandindo. Na mão! O profundo grotão. É vermelho! E o sangue da Rosa. No chão! Oi, Zezé girando. Vermelho! Outro corpo derrubado. No chão! O Domingo no Parque. Desespero! Alarido e carreira. Confusão! Ói, Dois corpos estirados. Vermelhos! Ói, Zezé manchando suas mãos.

- Ave Maria, amanhã num tem feira!

- Nem tem mais construção.

- Acabou-se a Brincadeira.

- Acabou-se a Confusão.

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6º Posição do certame Entrecontos (setembro-outubro), tema Música.

Talvez um dia volte a trabalhar neste texto, mas, por hora, o resultado mais agradou a mim, que o contrário.

Maria Santino
Enviado por Maria Santino em 05/10/2014
Código do texto: T4988108
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