Incidentes em Família

O terno escuro abraçava o corpo gorduroso, passos articulados somavam-se na calçada do lado do sol, um jornal de notícias passadas servia de proteção à luminosidade inclemente. Óculos de proteção solar vedavam os olhos curiosos esquadrinhando portas e jardins, aparentemente calmos e indolentes em suas observações. Fazia assim todos os dias. Inevitavelmente fazia a revista pela manhã e, invariavelmente, à noitinha quando regressava. Não era de conversar, sequer uma pausazinha para uma troca de ideia, um comentário do cotidiano, emudecido saía do mesmo jeito voltava. Não raro, estacava um pouco nas esquinas, principalmente quando ia trocar de quarteirão. Com a mão sobre a testa ficava um bom tempo a estudar o trânsito divisando linhas que ultrapassavam seus limites, mas de tão costumeiro e sempre demorado tomou-se um cacoete.

A família possuía modos estranhos. A mulher vivia sempre acamada, diziam que era sua prima de sangue. Poucas vezes colocara a cabeça para fora, quando muito uma varridinha rápida na varanda estreita ou aparando os ramos de um pinhão-roxo esticado rente ao portão minúsculo. O filho era um rapazote com defeito na locomoção, o passinho miúdo pelas pernas desritimadas e tinha uma mente dizia-se atrasada para o tardio desenvolvimento do corpo. O outro rebento era uma menina dessas em que o juízo não acompanha as mudanças da idade e pratica o exercício da vida sem objetividade alguma, sempre alheia ao curso transitório. Comentava-se na vizinhança que isto era uma prova da ilegalidade das junções sanguíneas, donde já se viu casar-se com pessoa da mesma família? Só podiam nascer filhos lunáticos e, se ainda por cima os pais, os próprios, já eram desajuizados! E ainda um irmão da esposa, vez perdida vinha abrigar-se ali, após passar tresloucado fazendo uma barulheira danada na rua, chutando gato e cachorro, jogando pedra em menino malcriado, com os olhos cor de fogo provocando um “pelo sinal” nas senhoras do pedaço. Ainda resta a prova de paralelepípedo arremessado contra dois garotos por taxarem-no de doido escovado e ralado - devido a sua cabeleira rala e alisada fortemente para a croa da cabeça – mas ficara o gradil da mureta levemente entortado com a parte tocada pelo projétil dando no ferro. Outra vez certo cão da redondeza percebeu não alimentar nenhum ânimo por ele e começou a esperá-lo no batente, doido para abocanhá-lo e só não o fazia porque ele já vinha de porrete na mão e o bicho notando a astúcia tratava de evadir-se. Se não, acompanhava-o o rabugento animal quando ele aparecia de noitinha e aumentava-lhe os passos até o mesmo batente ávido por uma mordiscadazinha só. Até que uma vez o indesejado canino não mais voltou após ferrenha perseguição quando ele, olhos mais encarnados do que nunca, veio com a cuca cheia de aguardente e vingança premeditada.

Uma única vez foi visto sem o terno de cores negras: ao segurar firmemente a alça do caixão da esposa que faleceu após abrupta queda, batendo com a cabeça no chão. Curiosos infestaram parte da rua vindos de bairros adjacentes pois era uma cena tipicamente bizarra, pareciam querer saber se aquela gente de maneiras esquisitas tinha sentimentos de piedade ou comiseração já que os fluxos de sangue não se batiam. Atesta-se que nem a derradeira ora da matriarca produziu sequer uma linha de pesar em seus rostos macilentos de leitura indizível. Havia, sim, uma morbidade passiva que mais lembrava espanto e indiferença. Tudo voltou à normalidade após o funeral e a casa continuou sombria como sempre fora.

Os órfãos iluminados pela divindade deram a continuidade dos dias, vivendo sós durante o dia. A casa foi de repente habitada por uma ordem de bichanos de toda a espécie. Todo dia o pai chegava com um gato novo trazido debaixo da jaqueta do paletó. Parece que ele saía catando-os por aí. Havia deles na calha de alumínio, nos encurvados beirais, no parapeito das janelas; cores rajadas desfilavam no muro do oitão, outras se difundiam por toda a extensão do terreno. A menina de quando em vez partia com a vassoura em mão enxotando algumas das crias, mas o irmão vinha do outro lado removendo-as e reconduzindo-as ao seus devidos lugares. Quando o tio certa feita apareceu de fogo foi uma verdadeira deserção de patas, um rebuliço de pernas estropiadas valendo-se das sete vidas. Uma figura dizendo-se protetora dos animais ameaçou polícia e um monte de impropérios afugentou a boa alma para os quintos. Os dois irmãos uniram as forças, valendo-se de um conjunto de mantimentos, e as panelas retiniram, gongando na cabeça do tio que correu espavorido e nunca mais deu notícias.

Numa manhã com céu límpido de nuvens, uma pivetada batia bola nas proximidades e interrompeu a brincadeira quando ouviu um uivar esganiçado vindo das entranhas da casa, acompanhado por uma imagem assustadora: a filha surgiu coberta de chamas, após atear fogo no corpo, tomando o rumo da rua. Foi grande o escarcéu. A bola de fogo vagou por instantes no alpendre, fez menção de sair, rodopiou soltando fagulhas e volveu de volta à sala, o tempo suficiente para vitimar a adolescente, jogada ao chão como um trapo velho. Quando os vizinhos chegaram abafando o fogo com panos molhados o corpo queimado já agonizava em últimos instantes, enquanto o irmão corria de um lado para o outro tentando reter a fuga em massa de um punhado de gatos.

Estranhamente ali não aparecia o carteiro, o leiteiro nunca depositava frasco algum no batente, o padeiro sempre descia a calçada para então subir novamente uma casa adiante. O portão arranhava solenemente suas dobradiças ante a chegada do velho com o seu soturno paletó e as sombras da noite engalfinhavam-lhe porta adentro. A fachada sombria lembrava, guardadas as devidas proporções, algo desses casarões das trilhas de terror; a porta ligeiramente entreaberta deixava antever uma penumbra característica desses cenários macabros. Falava-se nas rodas que por ali perambulava a forma vaporosa da dona da casa, rondando-a constantemente. Alguém ousasse "curiar" o que ali acontecia, seria considerada indigesta visita e sofreria algum mal sobre o qual médico algum diagnosticaria a cura. Uma vez o pessoal do corpo de bombeiros veio erradicar um enxame de vespas que fixara habitat na copa de frondoso pé de jambo, plantado no jardim da casa vizinha, e um dos homens fardados despencou misteriosamente ao pisar em uma das telhas, apenas para se posicionar melhor enquanto serrava um galho que ali espargia suas folhas redondas. Um contador de histórias da região cuidou ter visto o vulto de uma mulher vociferando enquanto empurrava o homem com extrema fúria. Em noites de lua cheia uma névoa cinzenta cobria todo o terreno e alguns corvos adejavam pelo telhado grasnando uma melodia mortuária.

Chovia copiosamente quando o carro fúnebre levou o corpo sem vida do enigmático senhor. O coração batera os últimos acordes na madrugada de uma sexta-feira de agosto, não há uma precisão do dia do mês. Seguiu para o descanso sem cortejo nenhum, isolado de todos como sempre fora. O único filho ficou acocorado a um canto; turva expressão de incerteza estampava-se em seu rosto e uma indefectível sensação incomodava-lhe o espírito. Quando alguém da redondeza cobriu-lhe com uma manta e puxou-o pelo braço, cumprindo a humanitária missão de solidariedade, ele abocanhou-lhe o pulso aferrando bem a marca de seus dentes e escapuliu, desvairadamente, ganhando o oco do mundo numa desmantelada carreira.

O que restou da casa atualmente são destroços. Ali costumam-se reunir alguns errantes da noite, de obscuras identidades. Seres que nunca encontraram sua razão de existência e, de uma maneira ou outra, vagam despropositadamente levando consigo os seus escombros.

Rui Paiva
Enviado por Rui Paiva em 11/10/2014
Código do texto: T4995509
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