Rio de Concreto

Vinha de lá, das bandas do Riachão, os sons distintos de boi mugindo, do gado solto no pasto, na hora em que os vaqueiros sentavam nos troncos de carnaúba, à sombra dos cajueiros, jogando conversa fora. Homens que se embrenhavam nas matas, em busca de boi brabo e desgarrado, caçando onça pintada, ou algum membro fujão da família de animais das fazendas vizinhas.

No amplo terreiro da casa de varandas compridas, galinhas e patos debicavam os grãos de milho jogados pela sinhá Vitória, as aves ciscavam debatendo-se umas nas outras. Os moleques àquela hora estavam entregues ao deslizar das águas de murmurantes riachos, tibungando em suas águas, fazendo acrobacias com seus corpos morenos e reluzentes, saltando dos galhos de árvores de cujos galhos pendiam as folhagens e varriam o chão úmido das margens. As meninas trançavam palhas da carnaubeira, tecendo sob a supervisão das mães lindos chapéus, bolsas, sacolas e esteiras que seriam vendidos no mercado público do povoado, no dia da grande feira.

Longe se ouvia o rangido das rodas de madeira agrupadas por arcos de metal da carroça do seu Lucas, distribuindo o saudável leite extraído no desmaiar da madrugada, quando a sombra dos céus começava a misturar-se com as luzes do dia prestes a nascer.

Seu Cassiano se lembrava de tudo isso e sua mente perambulava pelo descampado em que crescera e multiplicara sua família. Os olhos enevoados, tanto pela saudosa recordação quanto pela idade da vista cansada, fixavam-se nos gestos de seus netinhos que lhe ouviam com máxima atenção, tentando compreender a vida no mato, tão diferente daquela vivida num complexo de apartamentos.

Dona Consuelo, a dedicada avó, imprimia um toque de realidade enchendo o ambiente com o perfume do fumegante café e o cheirinho apetitoso das alvíssimas tapiocas banhadas em leite de coco.

Nas lonjuras do campo a saudosa memória de tempos em que a modernidade cimentou com seus magníficos prédios de vistosas vidraças. Nos olhares das crianças o despertar curioso de uma época jamais vivida, imaginada de longe por meio da narração arrastada do velho homem do campo. Lá fora um “buzinaço” de entontecer o juízo, as avenidas repletas de automóveis guiados pelos vaqueiros da cidade grande, enfurecidos pela falta de tempo para cumprir uma infinidade de compromissos. O pasto foi trocado por um asfalto onde o gado desliza velozmente não dando tempo, quase, para seus condutores jogarem a conversa fora.

Os rios deixaram de murmurar, esmagados que foram pelo concreto.

Dona Consuelo desconhece se há a grande feira no mercado público e se artefatos de palha são ali comercializados.

Rui Paiva
Enviado por Rui Paiva em 18/10/2014
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