Os Educados

Saíram do carro com seus respectivos sapatos fazendo barulho no asfalto. Era noite e o chão estava molhado da chuva que caíra há algum tempo. Do estacionamento até a entrada do restaurante, pairava no ar um misto de perfumes franceses e de algo podre... Podridão essa que quiçá estaria saindo de muitas bocas ali presentes.

Entraram no restaurante. Primeiro ele; trajava um terno cinza e gravatas azuis. Como todo homem, estava simples e elegante.

Exatamente um minuto após sua entrada, eis que surge ela; com um vestido vermelho e uma echarpe negra, era a definição visual do que se chama “mulher fatal”. Sua entrada, que foi impossível de não ser notada pelos convidados já presentes, foi realmente triunfal. O que os outros convidados não sabiam era que aquilo tudo tinha sido minuciosamente planejado. Ela se atrasaria de propósito e chegaria linda e triunfante no salão principal. Dito e feito. Ou melhor, planejado e feito.

Sentaram-se à mesa logo após falar com todos ali presentes (não que eles se importassem muito com todos ali presentes, mas era... “feio” chegar e não cumprimentar os demais. “- O que diriam as pessoas?”). “- Oi, querida! Há quanto tempo! Mas nossa... seu cabelo está lindo! O que você fez?” (- Credo! Mas o que ela fez no cabelo? Que merda!). “- Ah, nada de mais! É bom mudar às vezes, né?” (- O que você tem a ver com isso, sua gorda?). “- Mas e seus filhos, como estão?” (Duvido que tenham progredido na vida! Da última vez que os vi, pareciam duas bolas de carne prostrados diante do computador...). “- Estão muito bem. Meu mais velho está fazendo direito... E olha, está ganhando um dinheirão no estágio que conseguiu! Já o mais novo faz engenharia... Esse quer ser como o pai!” (- Tomou na cara, vadia? Veja como os meus filhos são produtivos e com a vida inteira pela frente! Morra de inveja, sua ventre-seco!). “- Mas que bom! E eles eram tão caladinhos, né? Essas crianças crescem e surpreendem a gente!” (- Hunfs! Duvido que o filho-bola-mais-velho esteja trabalhando! Ele só comia e dormia! E o mais novo, então? Quer ser como o pai, um engenheirozinho fracassado?).

Jantaram. “- A comida daqui é maravilhosa!” (Aff! Já vi que quando chegar em casa vou fazer um sanduíche de mortadela!) – disse/ pensou ela. Os talheres, inúmeros, praticamente tomavam conta da mesa. Já a comida, tão minúscula e pouca que deveria vir com uma lupa ao lado, para sabermos se comíamos ovo frito ou “des oeufs en cocotte à l’estragon”. Ao ver o prato, deliciou-se. Não pela comida, mas pelo fato de que poderia, pela primeira vez, exibir seus conhecimentos na arte de como-comer-chique-com-mil-talheres-inúteis. Ninguém ali sabia, mas ela passara a semana da véspera lendo e decorando um manual de etiquetas escrito por alguma socialite qualquer.

Separaram-se em duas mesas. Em uma sentaram-se os homens e na outra; suas respectivas, como dois grupos distintos. No entanto, essa distinção dava-se apenas pelo sexo, pelas roupas e pelos assuntos, porque, na verdade, o que corria entre eles era apenas uma mesma essência: a do veneno.

“- Como andam as ampliações do escritório?” “- Muito bem! Creio que em menos de dois meses tudo estará pronto.” (- É, né? Com uma fachada melhor fica mais fácil enganar as pessoas e ganhar dinheiro às custas delas!) (- O que isso te interessa?) “- Mas você está liiiiindaaa! Me diz da onde é esse vestido!” “- Ah, comprei em Nova York no mês passado... E adivinha quanto custou? Menos de 100 dólares!” (- Hunfs! Perua! Deve ter roubado esse vestido de alguma mulher para quem ela fazia faxina nos seus tempos de plebéia!) (- Invejosa! Ainda bem que reconhece que sou a mais linda dentre todas! Vou aproveitar para dizer que comprei-o nos Estados Unidos, para ela morrer de inveja! Também, essa daí que se veste como um saco de batatas deve morrer de inveja de qualquer um!).

Conversaram/destilavam sobre os mais variados assuntos. Os homens, política internacional (“- ...sim, e isso porque o valor do dólar...”), futebol (“- ...o salário daquele jogador ultrapassava os quinhentos mil...”), trabalho (“- Meu sócio vai de mal a pior! Só estou esperando o momento certo de comprar suas ações!”), dinheiro...; as mulheres, cabeleireiro (“- ...custou nada menos que 60 reais só o corte!”), roupas (“- comprei em Paris, nas Galerias Lafayette! E só custou...”), viagens (“- Meu marido e eu já fomos 15 vezes à França! E da última vez, compramos um Monet...”), shoppings (“- ... mas a loja era encantadora!”), dinheiro... É. Tudo girava em torno dele: o dinheiro. Sob a fachada de uma família feliz (sim, eram uma família!) jazia um verdadeiro império de falsidades. Nesse império, reinava a competição. E o troféu era apenas um: o dinheiro. Já a língua falada nesse império era a língua da educação. Bom, mas nesse ponto confrontamos com uma única questão: o que seria A Educação? Não dizer o que você pensa não é educação... É falsidade. Não agir conforme você gostaria de agir não é educação... É falsidade. Viver a vida planejada e futilmente sem espontaneidade também não é educação... Também é falsidade.

Eram educados. Eram falsos. Todos. Sem exceção. Tinha alguns que não faziam por mal, não eram calculistas, mas no fundo eram falsos. Não falsos-convictos, mas falsos-inconscientes. E nessa história toda de falsidade, hipocrisia e preocupação com o pensamento alheio escondidos em uma máscara de boa educação, o que ninguém sabia, era a única verdade existente no mundo: somos todos iguais.

Chegaram em casa. Os educados. O homem foi para o quarto, despiu-se sem ao menos tomar um banho e deitou-se. A mulher, foi para a cozinha preparar seu sanduíche. “- Vai querê um, benzinho?”. Comeu. Arrotou. Foi para o banheiro e tirou a roupa. Sentou no vaso sanitário e no meio de suas flatulências e excreções, que com alguns segundos de esforço saíram de seu corpo, ela adormeceu ali mesmo (talvez pelo cansaço somado ao excesso de álcool). Ali estava ela, nua na privada. Nua, conforme viera ao mundo. O que diferenciava era que viera ao mundo limpa e pura. Agora, era (somos) suja e corrompida pela própria vida. Creio ser essa a imagem verdadeira da verdadeira sociedade que eu não digo nem brasileira, mas universal. Seres egocêntricos. Seres falsos. Seres no meio da imundície, mas imundície essa camuflada sob um manto de luxo e riquezas. E ela ali, no trono-latrina. Como uma rainha. Rainha-falsa. Rainha de nada. Rainha de merda. Mas para todos, rainha bem educada.

Daniel Bartholomeu
Enviado por Daniel Bartholomeu em 27/05/2007
Reeditado em 29/05/2007
Código do texto: T503648