I
 
Se bem me lembro, meu amigo Valter já não estava bem desde que havia ido ao médico que há aqui em nossa cidade. Ele já andava velho, e a idade pesava em suas costas, assim como pesa nas minhas. Estava chovendo na cidade, e enquanto eu discutia com um colega do trabalho, qual era a funcionária mais bela da empresa, o Valter entra em minha sala e nos cumprimenta. Após eu decidir que a “estagiária” da firma, em matéria de beleza, superava em todos os quesitos as mulheres da empresa, nosso colega nos deixou em paz, logo resolvi voltar a trabalhar, mas não sem antes o meu amigo que me fazia companhia interromper-me e relatar um fato que aconteceu com ele antes de vir para o serviço:
- Hoje fui fazer um exame médico na clínica do meu cunhado. Sabe como é né? Já tenho 43 anos, estou ficando velho, preciso fazer alguns exames de rotina. – nessa época eu tinha 31 anos e já tinha escoliose, não sabia se minha coluna vertebral resistiria aos 40 – Bom, enfim, logo após fazer os exames e sair da sala do Carlinhos, vi uma mulher se contorcendo na cadeira que havia na sala de espera, parecia um cachorro babando. A mulher que estava junto com ela pediu ajuda pra mim, mas eu não podia porque precisava vir para o trabalho, aí falei pra recepcionista segurar as pontas enquanto eu ligava pro SAMU.
- Mas e aí?
- Aí que eu acho que ela morreu, a mulher estava tendo um infarto. Acabei vindo pra cá depois de tudo isso, lembro-me de uma moça do outro lado da rua pedir ajuda pra mim, disse que não podia, pois precisava vir trabalhar e que as autoridades competentes já estavam a caminho, entrei no carro e acenei para ela antes de vir para o trabalho.
- Você as conhecia?
- Não, mas nunca mais me esquecerei daquele rosto. Pobre senhora...
Volta e meia o Valter aparecia com suas histórias estranhas, algumas pareciam mais de pescador do que de funcionário público, quem sabe ele não teria uma carreira promissora pescando?

II
 
Depois do trabalho, eu sempre costumava chamar o pessoal da empresa para passar um tempo no bar Estrela, lá a gente jogava conversa fora e passava o tempo jogando truco. Sempre havia alguém para ir junto comigo, o Valter era uma dessas pessoas.
Em uma de minhas noites no bar, enquanto bebia com o Valter, começamos a falar de nossas respectivas famílias, e de algumas coisas que nos incomodava em nossos familiares, meu amigo era casado e já tinha uma família, enquanto eu ainda era solteiro e morava sozinho (o que não me impedia de participar dos almoços que havia nos fins de semana na casa da minha mãe). Ele já apresentava alguns sinais de embriaguez. Foi quando terminamos de tomar nossa última garrafa que ele começou a desabafar algumas coisas comigo:
- Estou meio... Pra baixo ultimamente.
- Ué, por quê?
- Lá em casa, a minha família... Incluindo os meus filhos e a minha mulher. Têm discutido muito comigo, dizem que sou muito frio... Eu não sou um cara frio, você me acha frio?
- Não.
- Falam que sou muito durão, que não choro... Eu realmente não sou de chorar, você é?
- Só quando meu pai morreu.
- Meus filhos vivem discutindo comigo... Falam que não sou carinhoso, que homem também pode chorar... Não entendo minha família.
- Beleza.
Depois daquele dia voltamos para nossas rotinas. Só depois de tanto tempo é que percebi o que Valter realmente estava querendo dizer.
 
III
 
Foi entre a primavera e o verão daquele ano daquele ano que ele morreu. Eu estava no velório observando o corpo, o chefe havia nos dado o dia de folga para ir ao enterro, pois o Valter ocupava um cargo importante na empresa, mas eu não ficaria por muito tempo, precisava ir pra minha casa alimentar o meu cachorro. Suzana, a esposa do falecido, estava aos prantos perto do caixão, chamei-a para vir comigo tomar um pouco do ar matinal, ela preferiu ficar junto do marido, desejei a ela os meus sentimentos. O filho do casal, João, nos observava e decidiu ir comigo para fora da capela mortuária. Perguntei a ele qual havia sido o motivo da morte de seu pai, pois até onde eu sabia ele havia tido um ataque cardíaco, não tinha maiores informações. Ele então me explicou como havia sido a morte, enquanto me olhava com seus olhos marejados:
- A minha mãe e o meu pai estavam discutindo porque o cachorro que nós tínhamos acabou morrendo, e ele não demonstrou interesse no assunto. Ele disse para a minha mãe enterrá-lo, pois precisava fazer alguns relatórios do serviço. Os dois começaram a discutir feio, eu pensei que eles iriam acabar se estapeando, o que de fato aconteceu. Meu pai deu um tapa na face da minha mãe que acabou caindo no chão, eu fui socorrê-la, mas não sem antes ir para a cozinha pegar uma faca. Falei para ele se afastar dela senão eu iria tomar uma atitude, logo após isso ele pôs a mão no peito e começou a cair lentamente ao chão, ele estava passando muito mal e se debatia muito, a minha mãe só teve tempo de ligar para o SAMU, o resto você já sabe.
Pois é, o resto eu realmente já sabia.
 
IV
 
Puxei um cigarro do meu maço e comecei a fumar, já era fim de tarde e o sol estava se pondo. Enquanto eu apreciava o horizonte, a filha do Valter veio ao meu encontro:
- Meu pai não deveria ter ido agora, tanta gente ruim nesse mundo e logo ele... Isso é injusto!
Elena já estava crescida, havia criado corpo de mulher, só havia percebido isso agora. Tentei consolá-la:
- Não fique assim, seu pai está em um lugar melhor.
E foi quando joguei a bituca do cigarro na rua que percebi que havia um casal de cachorros se acasalando. Ela disse:
- Ele sempre foi bem durão, e um pouco frio. Nossa, acho que nunca vi meu pai chorar.
Então mencionei a síndrome que o Valter tinha.
- Deve ser por causa do problema que ele sofria na glândula lacrimal.
- O quê?
- A Síndrome do Olho Seco.
Ele me olhou com ar de dúvida.
- Mas o que é isso?
- É um problema que algumas pessoas sofrem nas glândulas lacrimais. Acaba impedindo-as de chorar.
- Como você sabe que o meu pai sofria disso?
- Ele contou para mim uma vez, havia me dito que vocês já sabiam.
- Bom, ele mentiu para a família.
- Hmm.
Depois de um breve silêncio decidi sair do velório, acenei para o pessoal e entrei no carro, ainda a tempo de ouvir Elena perguntar para sua mãe se o seu pai sofria de algum problema que o impedia de chorar.
Juca Rino
Enviado por Juca Rino em 24/11/2014
Reeditado em 24/11/2014
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