Surdez

Eles se conheceram no meio de uma tempestade terrível, quando árvores caíam aos mais fortes golpes de vento e os raios partiam o céu como espadas afiadas. E logo houve um sentimento amistoso; a necessidade obrigou. Ele lhe deu a mão para que pudesse passar em meio aos escombros de sua casa e ela sorriu docemente, em retribuição ao gesto, que considerou heroico. E era mesmo, mas também era mais uma de suas obrigações. Ao resgatá-la, os olhos dela brilharam como se estivesse sendo iluminada pelo mais lindo sol. Os dele focavam em cada detalhe para poder mantê-la viva. Nos dias que se seguiram, o bombeiro e a moça mantiveram contato. Ele ligava todos os dias no mesmo horário. E ela enchia o coração de esperanças. Até que tiveram o que chamaram de “encontro oficial”. Ela foi com seu vestido mais bonito, lenço no pescoço e sorriso de verão. Ele, ao contrário do que ela imaginava, não foi de uniforme. Vestia um terno elegante e tinha um olhar sedutor. Seus cabelos negros e lisos caíam-lhe aos olhos e sua pressão, diferentemente da dela, estava normal. O restaurante que eles escolheram, assim como todos os outros detalhes daquela noite, eram um dos melhores da cidade. E, assim que a moça chegou, o rapaz deu-lhe um beijo demorado no rosto e pegou-lhe à nuca com muita sensualidade. Ela sentiu um arrepio como se um vampiro lhe quisesse sugar o sangue. Eles se sentaram e logo pediram pratos muito saborosos. Conversaram bastante sobre muitos assuntos: amor, relacionamentos, expectativas, sonhos e metas… E ela se mantinha surda diante de tudo. Ouvia apenas o que queria e não o que ele dizia. Tanto que um sincero “não” soaria como um delicado “sim” para a moça que queria muito mais do que podia ter. E, enquanto as delícias vinham à mesa, os olhares se confundiam. Ele tinha um lobo no olhar; ela, uma princesa encantada. Seu sorriso era voraz; o dela, doce como um pote de caramelos. Tanta doçura se misturava com a sobremesa e, entre as colheradas daquele divino petit gateau, ele disse um “Não estou pronto”, mas ela entendeu um “Podemos tentar”. O castelo de areia insistia em não ruir pois a princesa não conseguia perceber os sinais. Era pura como as virgens do céu. Não mais de homem, mas das malandragens do mundo. O lobo, notando que poderia manipulá-la como quisesse, começou a se aproveitar disso e a convidou para ir ao tal “lugar mais tranquilo”, onde assuntos mais íntimos poderiam ser tratados. E foram. Ela entregou-se a ele de coração, acreditando no improvável e ele deu a ela pouco mais de três horas de perda de tempo, o que, bem posteriormente se tornaria experiência de vida. Apenas sua ausência nos próximos dias fez com que a moça entendesse que nada mais haveria. Enfim ela ouviu o cruel silêncio; aquele que vem depois da surdez.

Tom Cafeh
Enviado por Tom Cafeh em 10/02/2015
Reeditado em 11/02/2015
Código do texto: T5132606
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