Mariposa

Acordei no meio da madrugada com as cadelas competindo com o cão do vizinho para ver quem late mais para o caminhão de lixo quando passa. Desci as escadas no escuro (não preciso de luz em minha própria casa, eu e ela somos um só) e fui até a cozinha, peguei um copo, fui até o armário, abri o uísque e me servi de uma dose pequena. Fiquei olhando a garrafa. Escocês, amadeirado, cheio de coice e fogo contido. Etiqueta negra. Garrafa já pela metade. Guardei o uísque e peguei a garrafa de cachaça. Segunda dose (mais caprichada) para garantir o sono dos anjos.

Subi as escadas de volta a meu quarto e minha cama e, bem, boas notícias! Meus rins estão funcionando. Sinto vontade de dar aquela mijada noturna e silenciosa. Desvio para o banheiro, ponho para fora e começo o serviço, um litro de mijo amarelo e ácido indo porcelana abaixo. Dou descarga, observo tudo ficar transparente de novo lá na porcelana (pura magia) e lavo minhas mãos. Olhando para o corredor vi algo se debatendo loucamente no chão, entre rodopios e tremores. Que curioso.

Me aproximei com a empolgação de um virgem diante de uma vagina e a curiosidade de uma criança. Era uma mariposa, toda manchada de negro e cinza, peluda, com um corpo espiralado como o de uma lagarta. Era bastante diferente de todas as mariposas que encontro por aqui, um pouco menor diga-se de passagem, e bem mais feia, fato este que fez com que ganhasse meu afeto quase que imediatamente. Sempre fui um estranho e tenho um carinho todo especial pelos desfavorecidos de vitória, beleza e amor.

A mariposa estava bastante fraca e cansada, mas não parecia estar ferida. Fiquei preocupado com minha nova amiga, se o gato acordasse, iria perseguir a pobrezinha até os confins do universo, até pegá-la e matá-la. Gatos, vivendo perigosamente (e com estilo) diante dos sabujos raivosos das casas e ruas e dos ignorantes homens tidos como criadores de pássaros (escravistas malditos), escapam de muitos preconceitos e violências e são também injustiçados, também tenho esse carinho protetor pelos bichanos, o mundo é um lugar péssimo para eles, é hostil e desumano, antro de crueldade gratuita. Contudo, gatos também são sádicos. Gostam de se divertir com a presa e torturam lentamente até perder a graça, quando finalmente matam e devoram, ou apenas matam, as vítimas de seu tédio.

Peguei um fino e pequeno pedaço de papel no mais absoluto silêncio. Aproximei da exausta amiga que logo se agarrou e aquietou em uma das superfícies. Fiquei ali olhando ela, repousando enfim. Parece até que sabia que não a mataria, sabia que iria protegê-la do perigo que o gato representava de sofrer uma morte lenta e dolorosa. Ou talvez tivesse desistido de vez. Abandonei estes pensamentos, desci novamente as escadas, tentando evitar que a madeira rangesse, fui até a porta, abri-a com toda calma do mundo e me deparei com uma noite clara e uma luz do luar capaz de exaltar deusas mulheres, deusas nuas, com as tetas e amigas expostas.

Haviam floreiras e plantas por todo quintal, as cadelas já haviam voltado a dormir e não acordaram, fui até um dos vasos, um cuja a planta tem muitas folhas e galhos, como um labirinto marrom e verde, e depositei o papel ali. Minha amiga horrenda quase que imediatamente percebeu e logo moveu-se para uma folha mais larga e ficou ali, de cabeça para baixo, protegida de qualquer criatura, quase que invisível atrás daquela folha, insana e inversa, de cabeça para baixo, desafiado a gravidade, o gato e a morte!

Voltei para dentro da casa, fechei e tranquei a porta, subi a longa escadaria novamente, feliz com o resultado. Ela está salva e eu estou feliz. As vezes a troca é justa mesmo quando não se ganha nada com isso, além da felicidade momentânea. O gato acordou e veio roçar na minha perna, miando baixo, miando pouco, puxando assunto.

- Gato feio! Gato muito, muito feio! Feinha! Vai dormir, vai...

Coço as costas e o pescoço e minha felina logo se entrega, ela é preta em sua maioria, com longas manchas brancas e pelos brancos soltos. Tem olhos verdes e expressivos, cheios de vida e curiosidade. É carinhosa e mia bastante, mas não incomoda. Me deito e ela vai passear pela casa e quintal, mas a mariposa ela não vai encontrar, ela não vai matar. Será uma madrugada segura para nós três. Sou um promotor da paz!

Por fim, a moral disso tudo é que: Continuo sendo o garoto que apanhou nos pátios das escolas, continuo recebendo os olhares que as pessoas dão para um estranho, o esquisito entre eles, continuo tendo coração mole para os que jamais eram escolhidos para fazer parte do time de futebol, para os que eram menosprezados pelas belas menininhas do colégio por não serem príncipes, para todo tipo de desgarrado social.

De fato, calvo, vinte e seis anos, pança mais e mais proeminente, peludo, pobre, nem de longe sou um príncipe. Estou mais para monstro. Mas hoje, para aquela mariposa, eu fui mais belo e redentor que qualquer príncipe montado em um cavalo branco. E me sinto em paz, um pouco embriagado, mas tão em paz, que durmo finalmente meu sonho dos anjos, livre para sonhar com mulheres seminuas voando com asas de...

Vinícius Risério Custódio
Enviado por Vinícius Risério Custódio em 02/03/2015
Reeditado em 15/11/2015
Código do texto: T5155122
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