Um Dia Incomum

Tudo começa com uma faísca.

Acordei para mais uma segunda-feira me sentindo completamente mal, acordei cedo, já era possível ouvir todos os vizinhos acordando, suas garagens abrindo-se, seus carros dando partida, seus cumprimentos, e eu, eu aqui sentindo náusea e dor de cabeça. O dia já estava predeterminado muito antes de chegar e acordar sabendo tudo que vai acontecer não me traz nenhuma segurança, traz apenas esse desânimo tão visceral. É como estar acorrentado a uma rotina que ninguém deseja para si, mas todos precisamos dela de alguma forma e por alguma razão, e então, doamos tudo que podíamos ser e fazer a nossos captores, em seus iates e jatinhos particulares. A escravidão nunca foi abolida do mundo, ao contrário, vestiu máscaras cheias de qualidades: Gosta de fingir ser edificante, diz que é honesta, justa, recompensadora, definirá quem você é, mas no fim é só a mesma escravidão de sempre. Nossa única recompensa é um salário mínimo indigno, apenas para manter-nos nessa sobrevida.

E tudo que os dissidentes recebem é a morte por parte dos capatazes responsáveis por manter todo esse sistema funcionando: Nossa amada polícia, nossos capitães do mato.

Lavei meu rosto, tentei vomitar e não consegui, mijei, vesti roupas desconfortáveis e fui para o meu primeiro trabalho do dia: Balconista. O comércio não é tão ruim, é mais fácil se livrar dos idiotas e dos perdidos. Você sofre algumas ameaças aqui e ali, sofre uma ou outra ofensa, mas não é nada que acabe com seu dia, porque essas situações são raras. O meu problema era o segundo trabalho, que ocupa a segunda metade da tarde e a noite. Ser um teleoperador é duro, é cáustico e você só encontra desolação, todo dia é apenas uma cópia do anterior e do anterior e do anterior... Sempre ouvindo as mesmas reclamações, das mesmas pessoas, os mesmos nomes e com o tempo até mesmo as vozes se tornam um coisa só, um som embrutecedor cheio de loucura.

A manhã, de qualquer forma, começou azeda com essa perspectiva negativa, mas passou rápido e sem problemas. Almocei, descansei um pouco e rumei para meu segundo emprego. Fui para o ponto de ônibus e esperei, não me senti mal pela espera, não me senti mal pelo atraso da condução, não conseguia me importar, eu sabia exatamente o que ia acontecer e como seria o resto do dia, como poderia me importar? Eu lá no fundo, desejava mais que tudo que algo quebrasse a rotina, rompesse os grilhões, rasgasse o marasmo. Mas em certa altura da vida, esse tipo de expectativa começa soar cada vez mais irrealista, quase um sonho, nada muda, nunca muda.

Por volta das catorze horas e quarenta minutos, cheguei em Santo André e desci do ônibus, dando início a minha marcha dos mortos pessoal indo em direção ao prédio dos horrores onde trabalho. Eis que, no caminho, vi ela, Didi, indo para o ponto de ônibus. Didi trocou de horário, trabalha de manhã e sai minutos antes do meu horário de entrada. Pensei em me esconder atrás de uma árvore e lhe dar um susto, mas achei que isso seria ridículo demais. Fui em sua direção, quando me viu, arregalou os olhos e ergueu os braços para me abraçar. Foi quando percebi, mais de perto, o quanto ela estava triste, que rosto triste, olhos tão tristes quanto a morte. Abraçou-me e antes que pudesse dizer qualquer coisa começou a soluçar e chorar baixo. Os dias tem sido difíceis para todas as almas viventes, estão pesados, massacram o ânimo e extinguem todo humor que conseguímos reunir, e Didi não é exceção. Já faz dias que ela se sente mal no fim de sua jornada de trabalho, ao ponto de quase vomitar, perder o apetite, perder o sorriso no rosto...

- Calma moça... Calma... Não fica assim. O que aconteceu?

Didi não respondia. Só seguia chorando, baixo, baixinho.

- Escuta, tá com pressa de ir para casa?

- Não.

- Certo! Vem comigo, vamos passear!

- Mas você não tem que ir trabalhar?

- Não. Não tenho não!

- Mas...

- Vem, vamos!

A faísca.

Começamos uma longa caminhada até o centro, decidi que a melhor coisa a fazer era levar Didi a um parque, um refúgio verde no meio de tanto cinza. O trabalho? Sinceramente, que se dane!

Durante o caminho, puxei papo diversas vezes com Didi, para distraí-la:

"Sabe como funciona o motor de uma moto?"

"Não."

"Aqueles dois pistões, eles..."

"Vince?"

"Oi"

"Qual é a diferença entre elas?"

"Essa daqui é carenada, é uma superesportiva, aquela ali é uma estradeira..."

"Talvez naquele sebo tenha o livro que você procura!"

"Será?"

"Não custa tentar Didi."

Aos poucos, Didi vai se soltando e começa a falar também. Seguimos caminhando, e de certa forma não consigo esconder minha preocupação. Quero vê-la bem de qualquer jeito, parece que é o que mais importa! Todo o resto não é importante. Para mim, a vida na cidade está praticamente extinta, exceto por Didi, é como se ela fosse a última luz, minha última salvação. Ela tem um coração imenso e cheio de bondade, eu a amo profundamente. Logo chegamos ao parque, procuramos um canto vazio e logo encontramos. Ela agora está deitada em um dos bancos enquanto eu estou sentado ao lado, olhando para ela, agora, já bem mais tranquila e leve.

Entre uma olhada e outra para a luz que vara através das copas das árvores, olho para ela e tudo ao meu redor faz sentido, aqui, entre flores, pássaros, cantos, folhas e galhos, tudo se encontra e se encaixa, tudo se esvai, todo resto se esvai. Não existem mais carros buzinando, ônibus lotado, trem, multidões, trabalho, reclamações, só existe ela e sua calma. Me sinto bem, me sinto em paz. Ver que fui capaz de fazer algo por alguém que amo tanto me deixa profundamente realizado. Seu olhar vaga por entre o arvoredo, que também se rende ao belíssimo espírito de Didi, é como se toda a forma de vida fosse atraída por isso, por essa força quase gravitacional que ela possui (não sou exceção), o olhar vaga apelo arvoredo e de vez em quando encontra o meu. Me inclino em direção a seu rosto, e enquanto lhe faço carinhos tímidos, beijo-a suavemente para selar ali o meu amor.

Não houve manhã, ou ruído, ou vizinho, ou trabalho antes, tudo começou aqui, tudo começou com essa faísca. É como se não houvesse nenhuma existência antes disso, ela apaga todo resto, tudo que não é bom. Fui verdadeiramente abençoado. As horas voam com ela aqui... Mas ela precisa ir para casa, tomar seus remédios diários. Antes de partir, ela me paga um jantar, um delicioso estrogonofe de camarão. Ela sorri o tempo todo e eu também, nossa felicidade agora transborda por nossos poros, por nossos rostos. Já satisfeitos, pegamos o trem e nem mesmo no horário de pico o vagão estava tão cheio quanto o esperado. Se leu até aqui acredita mesmo que foi sorte? Eu não!

Me despeço de Didi (ela desce uma estação antes da minha), deixo com ela um livro sobre astrologia chinesa, espero que se distraia um pouco. Ela se vai, mas tenho em meu coração que ela está melhor, está em paz, sei que está, sinto. Volto para minha casa sentindo o mesmo, sentindo me completo e, apesar de ter faltado no trabalho, sinto que não faltei para com minha responsabilidade, pois antes de mais nada, meu compromisso é para com quem eu amo. E não há ninguém que eu ame mais que ela (e talvez não haverá). Deito por fim em minha cama, depois de chegar em casa, e minha gata, miando, pede atenção. Chamo-a e ela também se deita. Posso enfim dormir em paz...

Vinícius Risério Custódio
Enviado por Vinícius Risério Custódio em 04/04/2015
Reeditado em 15/11/2015
Código do texto: T5194791
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