Incontrolável

Eu sabia que ela estava ali, sentia a sua presença, a sua proximidade, ela sempre vinha e ficava. Às vezes uma delas se ia, desaparecia sem deixar vestígios, mas logo outra tomava o seu lugar, eram assim, não davam valor a si mesmas. O ambiente em torno ficava aos poucos mais e mais leve pela sua presença e eu já me quedava a imaginar o seu aroma, como era doce! Quase palpável o seu frescor. Eu não a via ainda... Não! Não posso observá-la enquanto falo, mas falo, imagino... Não, imaginar não! Ela está ali, em corpo e alma ou, antes, mais corpo que alma! Aqueles que a conhecem sabem! É impiedosa, não possui coração, maltrata os homens, maltrata os pobres mortais, humilha-os, reduz a pó aqueles que não conseguem resistir, não podem, ou não querem.

Mas devo me aproximar, lentamente, já não suporto a separação, estive distante há muito tempo desde a última! Não posso ser surpreendido, devo ser cauteloso ao extremo, esgueirar-me pela escuridão, sem que seja percebido. A surpresa é minha aliada, devo agir em silêncio, o mais mortal de todos os silêncios. A quietude joga a meu favor, não serei notado, o triunfo já é meu! Um passo após o outro, sou como o ladrão, precavido, que espera a noite para encobrir o seu ato maléfico, a sua invasão, para não ser malogrado.

Confesso, é o meu vício, sou como Jack o estripador, não posso me abster de tomá-las em meus braços, sentir sua vida escorrer para dentro de mim. São frias por fora, geladas, o ar pesado as deixa assim é verdade, aquele ar noturno, mas não as recuso por isso, deito-me com elas, permanecem ao meu lado até o fim. Mas voltemos, devo agir, minha ferramenta é metálica, ela brilha, minha mão a empunha perfeitamente. Com ela firo-as pela parte superior, é fácil, simples, um leve esforço e ali faço uma abertura, então sinto aquele líquido jorrar! Ele me dá vida, a vaidade toma conta de mim, invade-me um sentimento de doçura, não posso resistir. Ali no escuro foi-me a primeira, depois vieram outras, não pude me controlar, sou um doente, já não posso evitar.

Chega! Não mais aguento! Sem mais circunlóquios! É chegada a hora! Apenas uma porta separa-nos, obstáculo que será facilmente transposto. Uma presa fácil, não será a primeira, tampouco a última. Aproximo-me cauteloso, abro a porta e a vejo, não! Melhor! Contemplo. É belíssima, sua aparência transcende o que há de mais belo na natureza, ou quase, pois nisso devo, observando as maravilhas da criação divina, retratar-me.

Pronto! Estou às costas dela, certamente aguarda, pacientemente, um cliente, mas para esta já é tarde demais, meu corpo treme como que antecipado pelo prazer, é chegada a hora, hoje será seu fim. Estendo a mão e toco-a...

Então algo acontece e escuto uma voz retumbante, sombria, como o ribombar de mil trovões:

- Aderbaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaal! O que faz novamente, parado assim com esse olhar abestalhado em frente à geladeira? Por acaso se esqueceu de sua promessa?

Era o meu fim, meu infortúnio seria completo, minha mulher percebera a minha manobra. Definitivamente, urge tornar-me abstêmio.