Rotina

Como em toda rotina, mais um dia termina. Na sala escura, encontra-se Luara, desditosa. Essa mulher, de pés cansados e mente inquieta, espera o marido, que mais uma vez está atrasado para o jantar.

Ela não liga muito, afinal, chegara há poucos minutos e ainda não se recuperara de um dia estressante que tivera no trabalho. Não é fácil comandar uma equipe de vendas, ainda mais no fim do ano, em que a corrida comercial está a todo vapor. Ela precisaria tomar coragem para fritar o bife e fazer o arroz. “Vidinha miserável!”, pensava a moça, engolida pelo silêncio feroz da casa.

Às vezes, sentia-se entediada em seu casamento. O marido vivia na rua. Ora trabalhando, ora jogando bola. Isso quando não inventava de sair para algum bar com os amigos numa sexta-feira à noite, deixando-a ali, sozinha, à espera de algo. Algo que nem ela saberia dizer o que seria, caso lhe perguntassem.

22h43. A chave encaixa-se na porta da sala. A maçaneta gira. Entra um homem grandalhão, moreno, bonito apesar das marcas de expressão deixadas pelo tempo. A barba por fazer lhe confere um ar maldoso, bruto. As roupas, meio largas, transmitem certo ar despreocupado.

Mesmo processo. Enfastiado, cansado, arrebentado. Joga-se na poltrona, todo espalhafatoso. Um pé apoiado no chão, o outro em cima da mesa de centro. Sala escura. Silêncio rei. Barulho de prato quebrando na cozinha acesa. A esposa, com seus cabelos longos e negros, agora maltratados e secos, presos em um coque enquanto ela cozinha. Cheiro de bife queimado.

- Lu, você não tá vendo que esse troço já passou do ponto?

- Boa noite pra você também, querido esposo! – a ironia já se tornara presente na vida conjugal deles. Entre as discussões, sempre uma gracinha ou outra. – Não sei se você percebeu, mas acabei de deixar o prato cair e quebrar sem querer. Preciso recolher os cacos. Se você veio para casa só pra me criticar, deveria ter ficado pela rua – Luara estava com uma expressão raivosa enquanto recolhia os cacos de vidro e os depositava num saco específico.

- Eu bem que... Olha, não quero brigar com você.

- Ótimo! Agora podemos jantar em paz? – sugeriu a mulher.

Arrastando-se como um fantasma, Fábio vai até o armário da cozinha. Pega os copos, pratos e talheres e coloca-os na mesa. Sentam-se e iniciam mais um jantar.

- Sabia que você fica linda com os cabelos amarrados? – a mulher paralisou e corou. Depois de tanto tempo, um elogio? Muito estranho. De certo ele estava se sentindo culpado por algo que fez.

- Por que você está dizendo isso? – respondeu num tom seco. – Está de caso com aquela loira bonita que trabalha contigo?

- Ahn?! Você é maluca mulher! Vive reclamando que não te elogio, nem dou atenção suficiente, e quando faço... me trata com dez pedras na mão. Tá vendo por que não dá pra ser romântico com você?

- Descul...Eu só... achei estranho você soltar isso do nada, sem motivos aparentes. Obrigada. Mas sei que estou parecendo uma morta, com essa cara pálida e cansada. Nem tomei banho ainda. Só pensei em cozinhar pra você.

O silêncio novamente toma conta da casa. Paredes frias azulejadas, ouvindo o bater daqueles corações, agora quase desconhecidos. A vida conjugal não estava fácil. Os dois mal conversavam, pois ela saía de casa às sete e retornava no fim da tarde. Já ele, professor de musculação, ia trabalhar um pouco mais tarde e só chegava depois das 21h. Luara nunca entendera por que se apaixonara e casara com um homem tão diferente de si. Afinal de contas, ela trabalhava no comércio, dona de um espírito empreendedor e, na maior parte das vezes, racional. Ele sempre fora mais despojado, desligado... Sonhava em sair pelo mundo sem rumo e viver de uns trocados.

Esse jeito livre do marido sempre a deixou insegura. Ela sabia que Fábio tinha várias alunas, muitas delas jovens e atraentes, que poderiam muito bem desenvolver interesse por ele, ou vice e versa. Luara era extremamente insegura, mas disfarçava esse lado da personalidade embaixo de uma carranca dura, postura de mulher firme e independente.

23h34. A mulher se retira do recinto. Não vê a hora de se despir daquela roupa grudenta, tomar uma ducha quentinha, descansar e dormir. Fábio também se retira. Porém, com outra intenção: a de surpreender a esposa.

Ela tira a roupa rapidamente. Joga a blusa e a calça no cesto, calçados espalhados pelo chão do banheiro. A água cai, benditamente, naquele corpo fatigado. Seus pensamentos a mil. “Ainda não me convenci de que Fábio estava me elogiando à toa. Aí tem coisa. Amanhã mesmo vou dar um jeito de segui-lo”...

Enquanto isso, Fábio revira a despensa, à procura de um vinho que sabia estar ali. Havia ganhado de presente de aniversário no mês anterior de Duda, um grande amigo. Ele finalmente encontrou o vinho argentino. Limpou a embalagem, pegou duas taças e levou para o quarto. Precisava ser rápido.

Escolheu a melhor roupa de cama e assim a arrumou. Apagou a luz, deixando apenas a claridade azul luminescente do abajur. Colocou um CD de música francesa ao fundo, o favorito da esposa. De fato ele sabia como tocar o coração de uma mulher aborrecida.

Passados menos de cinco minutos, Luara sai do banheiro. Cabelos molhados pingando no tapete bordado do corredor, pés gelados no chão. Segue até o quarto, gira a maçaneta e... “O que é isso?”

- Surpresa pra você amor. Hoje quero te fazer a mulher mais feliz do mundo.

- Não acredito, Fábio! Eu estou tão... contente! Me desculpe por ter sido grossa com você hoje cedo. Eu sou uma idiota!

- Ah, é mesmo... Agora tire essa toalha e venha aqui com seu homem! – murmurou com um sorriso malicioso no canto da boca.

A moça não hesitou. Deixou a toalha branca cair e logo abraçou carinhosamente o marido, enchendo-o de beijos. Há uns dois meses não se relacionavam intimamente, agora ela queria aproveitar.

Depois de muitos beijos molhados, corpo no corpo, suor escorrendo, respiração ofegante, finalmente... o prazer total e delirante!

- Meu querido, não sabia que você me desejava tanto assim.

- Você nem imagina quanto é atraente, Lu. Por que acha que me casei com você?

- Talvez pela minha inteligência, boa educação, sei lá... Talvez simplesmente por me amar!

- Foi isso mesmo minha flor, casei por amor...

Após se despedir com um beijo demorado, a esposa, felicíssima como há muito tempo não se sentia, adormeceu. Provavelmente sonharia a noite inteira com o amado e com os momentos que tiveram.

Fábio, safado, acendeu um cigarro e fumou de frente pra janela, pensando em qual aluna “pegaria” no dia seguinte, enquanto a amada esposa o esperaria em casa.