O Rapaz que Citava Nietzshe

O RAPA QUE CITAVA NIETZSCHE

Celso estava sempre desempregado. Mas não era por culpa sua ou porque não procurava emprego. Procurava sim. Ele fez seus estudos regulares sem muito entusiasmo mas tinha grandes pretensões na vida graças ao estímulo da mãe, Elizete. Ela não queria que o filho passasse as mesmas privações e humilhações pelas quais ela julgava ter passado. Apenas com o ensino primário, ela teve que trabalhar em diversas profissões que considerava indignas; serviços de limpeza, empregada doméstica, balconista de lanchonete e muitas outras funções “baixas” no seu entender, e jamais admitiria que o filho trabalhasse em algo parecido. Tentou mostrar a ele desde cedo que estava destinado a ser alguém na vida e não apenas mais um na multidão. Aos dezesseis anos ele arrumou seu primeiro emprego de ajudante numa fábrica de meias sob os protestos da mãe que exigia no mínimo, a função de Auxiliar de Escritório para o filho. Pediu demissão logo em seguida, pois não suportava os lamentos de Elizete. Aos dezenove anos sem muito esforço ele conseguiu passar no vestibular para o curso de Direito numa prova de múltipla escolha em uma Faculdade duvidosa. Outra vez a mãe voltou com novas insinuações, dessa vez queria que ele arrumasse uma namorada de verdade.

Celso parecia não ligar muito para mulheres. Não que fosse gay. Não era. Mas seu comportamento ambíguo em relação a tudo, fazia com que as moças se afastassem dele e o máximo que acontecia era ele “ficar” com alguma menina desconhecida, mas nada de relacionamentos duradouros, preferia a companhia dos amigos com os quais bebia muito e consumia algumas drogas. Assim, as crises de abstinência que se seguiam eram terríveis. Sentia remorso de ter ficado doidão e ter chegado naquele estado em casa, onde encontrava Elizete de joelhos rezando para que Deus tivesse piedade dele e o protegesse. Mas o remorso mesmo vinha do fato de saber que a mãe se matava de trabalhar para pagar o aluguel da pequena casa onde moravam e ainda as mensalidades de sua faculdade. Então ele passava um longo tempo afastado dos amigos, frequentando a igreja junto com ela. Lia a bíblia com verdadeira veneração e gostava de citar trechos dos Salmos e do livro de Salomão.

Como não aguentava mais ficar em casa sem fazer nada enquanto todos os seus amigos trabalhavam, bateu o pé e aceitou uma vaga na função de Auxiliar de Acabamento, para grande tristeza da mãe. O segundo emprego era numa grande metalúrgica que pagava razoavelmente bem, levando-se em conta que ele não sabia fazer nada e não era muito esforçado, a não ser para decorar citações. Mas as citações bíblicas contrastavam com seu comportamento agressivo algumas vezes. Nas sextas-feiras costumava jogar bilhar com os colegas de trabalho logo depois do expediente e entre um palavrão e outro ao errar uma bola, citava algum versículo do Livro Sagrado, o que lhe rendeu o apelido de “Pastorzinho”. Teve que abandonar o emprego, pois não aceitava a gozação dos colegas de setor e depois da firma inteira. Por isso resolveu ser sábio e mostrar-se como tal. No começo não sabia exatamente como executar essa façanha, pois os versículos bíblicos eram muito conhecidos e ele queria algo novo e teria que descobrir. Foi quando viu por acaso uma citação de Nietzsche em uma das redes sociais que frequentava com assiduidade. As palavras cortantes do filósofo ficaram gravadas em sua memória por dias, até que ele resolveu adotá-lo como tutor intelectual.

Como tudo que fazia na vida, Celso não teve interesse algum em ler nada a respeito do filósofo, nenhuma obra. Nem mesmo a biografia resumida que poderia encontrar facilmente na Internet. Para ele bastavam as citações, que na maioria das vezes nem sabia o que o grande personagem estava dizendo. Mas a primeira dificuldade foi descobrir como se pronunciava aquele nome difícil. Aquela inesperada disposição de vogais e consoantes despertaram nele, no primeiro momento que viu o nome impresso, uma sensação de que aquilo era algo importante. Nietzsche, dizia ele tentando mentalmente fazer a separação das sílabas... Sim, devia ser um cara muito importante para ter tantas consoantes juntas no nome. Como era feita a divisão silábica mesmo? Nie-tzs-che? Ni-e-tzs-che? E como se pronunciava tzs? Bom, deixa pra lá. Tinha lido alguns aforismos do filósofo e se encantara. Obstinado como era digitou no Google: "frases de Nietzsche" e dai por diante foi fácil conseguir os principais aforismas do alemão, e decorá-los não foi um sacrifício muito grande, devido à prática adquirida com os Salmos.

Celso espalhava as citações de Nietzsche por todo lado. Nas redes sociais, nos e-mails que mandava, na padaria quando ia comprar pão e assim por diante. Estava procurando um emprego que satisfizesse a vaidade da mãe há anos, mas sempre teve dificuldade nas entrevistas. Mesmo tendo um péssimo currículo, cheio de elogios a si mesmo, era sempre chamado devido ao seu nível universitário, coisa ainda rara no País. Mas os entrevistadores percebiam logo de cara que aquele rapaz tinha o ego muito maior que a capacidade e o talento que procurava demonstrar, e as vagas de emprego iam pelo esgoto. Então, decepcionado, Celso procurava os amigos de bebedeiras e as sessões de álcool e drogas se prolongavam por semanas antes que fosse finalmente resgatado pelos anjos do Senhor, segundo a mãe.

Com muita economia Elizete pagava também a conta da Internet , e quando a mãe o via horas e horas martelando as teclas nas salas de bate papo, na sua simplicidade, dizia que ele não devia estudar tanto para não forçar a mente e cair em depressão. E realmente ele se esforçava muito; já havia decorado dezenas de endereços de sites pornográficos, o que não era coisa de se desprezar, com todos aqueles www, aquelas arrobas e aqueles nomes vagamente sugestivos ou singelamente explícitos. Ele não tinha interesse por quase nada, gostava mesmo era de fumar maconha e depois ficar deprimido, o que lhe rendia alguns trocados da mãe quando “retornava das trevas”, e até ganhava a compreensão de alguns parentes metidos a intelectuais que nunca deixavam de aplaudir os ditos filosóficos do moço, mesmo sem entender nada. Claro que tinha a parte da família que não aprovava seu eterno desemprego, as recorrentes crises de depressão e a total dependência da mãe. Mas destes Celso se desviava o máximo que podia.

Certo dia foi chamado por uma empresa de grande porte para a vaga de Assistente Jurídico. Era a primeira vez que tinha sido convocado para essa vaga, pois os escritórios nos quais tentara conseguir estágios sempre arquivavam seu currículo na cesta de lixo logo depois da primeira leitura. A entrevista e a redação obrigatória para aquele cargo não foram diferentes das outras; uma longa sequencia de autoelogios e frases desconexas. Teria sido rejeitado na hora, não fosse a recomendação expressa do dono da empresa no verso do currículo, para espanto do entrevistador.

Aquela firma se mantinha graças às licitações duvidosamente ganhas para executar serviços de coleta de lixo para a prefeitura da cidade. O Sr. Manoel, dono da empresa, estava sempre à procura de pessoas influenciáveis que poderia utilizar para obter vantagens e desbancar a concorrência. Já tinha dois vereadores na Câmara mas precisava de mais dois para se garantir. Resolveu investir naquele rapaz, pois ele tinha o perfil adequado. E assim, Celso finalmente arrumou um emprego digno dos anseios de Elisete. Andava agora de terno e gravata e as citações redobraram e tomaram novos contornos, pois Celso inseria palavras que o filósofo nunca havia dito, misturando-as com trechos bíblicos. Assim, muitas das frases eram absolutamente incompreensíveis, o que causava enorme admiração dos parentes “intelectuais” de sempre e dos amigos aos quais ele pagava rodadas de cachaça e maconha. Era também muito procurado pelas mulheres que há tempos atrás, viravam a cara pra ele.

O Sr. Manoel era muito esperto. Além de ser o homem mais rico da cidade e ter uma diversidade de negócios impressionante, era o verdadeiro fundador e presidente do PPPP – Partido Positivo do Progresso do Povo – embora não tivesse qualquer vinculo legal com a sigla. Agia nos bastidores, manipulando resultados e indicando nomes nas eleições. Mantinha também algumas empresas de fachada às quais usava para burlar o Imposto de Renda. Tinha lido o currículo do pretendente ao cargo anunciado no jornal, por acaso, por um erro na entrega da correspondência. Ia repreender Lúcia, sua secretária, mas a curiosidade falou mais alto e ao ler o currículo viu naquilo grandes possibilidades. Registrou Celso em uma de suas empresas fantasmas para, quando o lançasse a algum cargo público, o vínculo empregatício não ficasse evidente. Não foi difícil convencer o rapaz a candidatar-se ao cargo de vereador. Bastou assoprar um pouco mais o ego já inchado do moço e o trabalho estava feito.

A campanha eleitoral foi fácil. Os marqueteiros logo perceberam a disposição do candidato a misturar frases do filósofo alemão com versículos bíblicos e então foi moleza. Um deles lembrou de um trecho do Livro, onde um profeta falava em língua estranha “para que o povo não entendesse”, e assim os discursos eram elaborados seguindo essa regra e depois de pronunciados pelo candidato eram amplamente divulgados nos jornais da cidade, quase todos com interesses comerciais nas empresas do Sr. Manoel, que gastava fortunas em anúncios publicitários. O povo delirava ouvindo os discursos inflamados de Celso e lendo os artigos elogiando as qualidades oratórias do futuro vereador. Foi um sucesso estrondoso nas urnas. Nunca antes na história daquela cidade alguém foi tão votado quanto aquele jovem entusiasta das palavras. Elizete delirava. Não tinha se enganado quanto ao futuro do filho.

A súbita ascensão na vida e a fama repentina deram a Celso mais confiança ainda do que havia demonstrado nos seus currículos. Visitava a empresa que trabalhara quase todos os dias e tinha longas conversas com o Senhor Manoel, que deixou bem claro o que esperava dele na Câmara dos Vereadores. Ele cumpria à risca o que era determinado pelo antigo patrão e benfeitor, mas quando o empresário exigiu uma atitude que colocaria não apenas seu cargo público em perigo mas também sua própria liberdade, tentou recuar ao ver diante de si alguns papéis que devia assinar, papéis que o colocariam na mão do ex-patrão para sempre. Foi então que o Senhor Manoel tirou da gaveta o currículo do moço e mostrou a ele que, com aquilo, jamais conseguiria um emprego nem para tratar de porcos. Deixou bem evidentes os motivos que o levaram a contrata-lo e mais claro ainda que poderia acabar com sua carreira num piscar de olhos. Disse muitos palavrões em voz alta, além de ofensas ao Vereador, saindo em seguida e batendo a porta com estrondo.

Celso estava arrasado. Viu esvair-se toda a confiança adquirida nos últimos meses. Não passava de um “laranja”, um testa de ferro do empresário. Ficou ali parado em frente à mesa do chefe sem qualquer reação. Foi quando sentiu as mãos de Lucia acariciando seus ombros e o leve perfume que vinha do seu corpo.

__Não liga não. Disse ela. __Ele está com problemas com a esposa, é só isso.

Mesmo atordoado pela avalanche de ofensas, Celso sentiu o sangue borbulhar com a proximidade da secretária. Estava de olho nela desde o primeiro dia de trabalho, mas a atitude séria e reservada da moça impediu que ele tentasse alguma coisa, mesmo com todos os comentários a respeito das verdadeiras relações dela com o Senhor Manoel. Mas eram apenas fofocas, ditos maldosos-pensava ele.

__Assina aqui. Disse ela segurando sua mão e colocando a caneta entre seus dedos. __Não se preocupe. Tudo vai dar certo.

Celso assinou sem mesmo ler resto dos papéis que ainda não lera. Tinha esquecido tudo; a fúria do ex-patrão, a vergonha da presença da Secretária e a vergonha de si mesmo. Ficou completamente transtornado ao sentir o leve toque dos peitos dela roçando sua nuca pouco antes de pegar sua mão e aperta-la fazendo-o segurar a caneta.

Assim seguia a vida do entusiasta da filosofia. Sua mãe não cabia em si de ver o filho subir tão repentinamente na vida. Não pagava mais aluguel, tinha casa própria agora. __Com a ajuda de Deus

__Meu filho vai ser prefeito! Exclamava ela. __Prefeito não. Vai ser Presidente.

Nessa época Celso já engatara um sério romance com a secretária. Não sabia dizer quem conquistou quem. O que sabia é que aquela moça de corpo escultural, cabelos longos e seios enormes sempre foi seu sonho de consumo erótico. Elizete torcia o nariz para o romance, mas evitava tocar no assunto temendo a volta da depressão do filho. Enquanto Celso, esquecido das ofensas de Manoel, brindava com ele e com Lucia o sucesso de seus planos e o dinheiro que entrava por todos os lados. O rapaz não percebia ou fingia não notar os risinhos e olhares irônicos dos empregados. Estava feliz. Estava apaixonado por aquela mulher que dava a ele tudo o que sempre sonhou. Pretendia casar-se com ela o mais depressa possível e depois disso consolidar sua carreira política. Quem sabe candidatar-se a Prefeito? Deputado Estadual? Federal? Senador? Presidente da Republica...

Quando as investigações da Polícia Federal vazaram, foi como o rompimento do dique de uma enorme represa. Em todos os jornais apareciam estampadas as fotos de Celso e de outros políticos da região e do país. Ele havia acumulado em pouco tempo uma fortuna muito além das possibilidades de um vereador. Não era tão esperto como Manoel, e este nem se preocupou em orienta-lo na maneira de esconder o capital. Sem saber ele era dono de diversas empresas que lavavam o dinheiro do empresário e o que recebia não era nem cinco por cento dos rendimentos. Apavorado correu até a empresa e passou pela recepção e pelos empregados assustados como um louco. Abriu a porta sem bater e a cena a que se deparou o fez esquecer momentaneamente da desgraça que o aguardava.

Manoel e Lucia não fizeram nenhuma tentativa de disfarçar o que estavam fazendo. A moça desceu da mesa com um sorriso desdenhoso, ajeitou a saia e fechou os botões da camisa, enquanto o empresário contentou-se em subir as calças, puxar o zíper e prender o cinto. O choque foi tão grande que o rapaz demorou muito a esboçar uma reação.

__Sua vadia. Disse quase chorando. __Vocês são imorais.

Manoel manteve a calma de sempre. Apenas olhou bem para o vereador e disse

__Lembre-se... Não existem fenômenos morais...

Celso não se lembrava do que aconteceu em seguida. Lembrava-se apenas do olhar de desprezo de Lúcia abotoando a camisa. Nada do que aconteceu e do que estava por vir poderia feri-lo mais do que aquele olhar. Pensou no sofrimento que sua desgraça causaria à mãe e também da euforia que esses acontecimentos iriam causar na maioria dos parentes que, mesmo com seu sucesso, nunca acreditaram nele e teriam agora motivos de sobra pra comemorar. Tudo isso passou por sua cabeça enquanto andava sem rumo pela cidade. Mas nada espantava aquele olhar da mulher que amava. Vagou horas pelas ruas como um alienado, até que cansado, sentou-se no banco de uma praça.

Estava imerso em seus pensamentos quando uma carroça puxada por um jumento parou bem em frente ao banco onde ele estava. O animal recusava-se a prosseguir e o dono castigava lhe o lombo com convicção. Celso indignado levantou-se do banco e puxou o carroceiro de cima da boleia com violência. Distribuiu socos e pontapés até o homem fugir apavorado. Então o Vereador não se conteve e as lágrimas desceram pelo seu rosto. Abraçou a cabeça do Jumento enquanto soluçava violentamente. Quando conseguiu se controlar, olhou nos olhos do animal e disse.

__Sim amigo. __Não há fenômenos morais, apenas interpretação moral dos fenômenos.

AMAURI CHICARELLI
Enviado por AMAURI CHICARELLI em 05/07/2015
Código do texto: T5300542
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