JANTAR A DOIS

Eu me perdia olhando-o perder-se no cuidado de enrolar aquela mistura de arroz, feijão e carne moída em uma tenra folha de alface.

Não conseguia entender aquela meneira insólita de comer em absoluta preguiça e engenhosidade artesã. Aliás, desistira de entender muita coisa nesse mundo.

Depois que conseguia finalizar sua obra, seus dedos longos e brancos pegavam aquele cilindro verde e já frio, levando-o numa calma impressionante de mundo em absoluta paz. Sua boca se abria somente na milimétrica medida (nem mais nem menos) para receber a embalagem fofa que os dentes mais acariciavam do que trituravam.

Seus olhos vagos nada expressavam de avidez. Apenas permaneciam lânguidos, fitando o nada, como se olhassem para dentro da própria boca, enquanto a língua revolvia aquela massa há muito transformada em uma pasta homogênea à espera de ser engolida.

Assustava-me a total passividade com que eu absorvia aquele quadro. Envolvia-me naquele absoluto silêncio apenas quebrado pelo barulho cadenciado da empregada em sua peregrinação entre a área de serviço e a cozinha.

¨¨¨¨

Há muito deixáramos, eu e ele, de sermos um casal, para apenas sermos presença necessária ao preencher do vazio com milhares de outros vazios decantados no fundo da alma. Criou-se entre nós um trato mudo de nos alhearmos e nos encerrarmos dentro de nossos casulos individuais, que se emparelhavam apenas por uma conveniência social.

Ficara no esquecimento a birra pela pasta de dentes espremida pelo meio, o papel higiênico colocado de forma inversa, as roupas espalhadas pela casa, o forro de mesa servindo como guardanapo, a tampa do sanitário toda mijada.

Nada disso importava mais!

Perderam-se também no tempo os segredos dos lençóis, a cumplicidade do dia a dia, a busca insistente e mútua... os laços de carinho.

Ficara para trás tudo que simbolizara a cumplicidade de nossas almas (Realmente o tempo é carrascodas vidas vãs; das juras vãs!). A alcova a que nos prendêramos tornara-se o nosso maior tormento. Ali, circunstâncias e ações se mediam e se digladiavam em silêncio.

¨¨¨¨

O garfo dançava dependurado entre meus dedos, como pêndulo ou fiel, inútil e pesado, a reger e ferir o imperativo das horas que nos engolia. A comida fria no fundo de meu prato exalava a dor fútil do que antes fora tórrido por ali, inclusive a paixão ou o amor que, antes estrada pavimentada e lisa, desgastara-se e cedera lugar ao mato crespo da inobservância.

_ Com licença!

Sua voz saíra meio pastosa, expulsando, sem qualquer cuidado, restos de comida mascada sobre a toalha em tons florais que cobria a mesa de jantar. Não soara como um pedido tal frase. Soara como um aviso de que a solidão do corpo se aliaria à da alma pelos próximas horas.

Divididas as nossas dores antes compartilhadas na cumplicidade de nossas horas de intimidade, por quase oito anos de convivência, o ranger da porta da sala anunciou a saída do meu quase eterno amado. A parte que me coube na partilha derramou-se pelos meus seios, pelos cômodos, pelos móveis, causando calafrios que há muito substituíram os arrepios de prazer que imantavam nossos corpos profusos de afeto.

Estava convencida que a nossa intimidade se transformara em meu pior carrasco. Rasgados os véus que cobriam nos aconchegos, o sabor da procura e da descoberta derreara-se ante a frieza da impessoalidade masculina que ele aprendeu a cultivar tão bem. Não havia mais nada a ser catalogado!

O garfo, enfim, escapara de meus dedos e descansava sobre a comida que ele próprio não foi capaz de remeter à minha boca árida. Seus dentes longos e recurvos pareciam sorrir de mim e de minha capacidade de me perder na letargia exasperante do meu cotidiano. Pela minha autopiedade de agora, as arestas da solidão se compunham e o caminho da autoestima se perdia, sufocado pela inanição e ostracismo.

Forjada a ferro, fogo e fatalidade, minha armadura bizarra esteve, na surdina, criando uma simbiose tão profunda, que já nem saberia dizer quem é quem de nós. Mas, o que importa isto? A quem importa isto? Fato é que o embrião da amargura se fez feto em mim... e adotou ares de eternidade.

Abandonei a mesa e fui para o meu quarto, esquecendo-me tranquilamente sobre os lençóis da aquiescência.

Paulo Pazz
Enviado por Paulo Pazz em 26/07/2015
Código do texto: T5324637
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