Ele-Ela: sobre paixões e ônibus.

ELE.

Hoje é sábado, são exatamente 12h40min e me encontro fisicamente no ônibus número 51. Tenho outra percepção referente ao que é um belo dia, nele não há sol, diferente de hoje. Embora cedo o dia não seria perceptível já que as negras nuvens escureceriam todo o céu preparando-o para esvaziar-se em um choro alarmante de revolta, processo que desencadearia um maravilhoso cheiro de terra molhada e acabaria deixando tudo mais poético. Mas hoje não se trata de um dia como esse, é um sábado propicio à praia, a pessoas felizes e saudáveis com pouco ou nenhum trauma e o menos atrativo: ao cheiro insuportável de protetor solar.

Se Schopenhauer estiver certo e a vontade for o principio norteador da vida humana a porta deste ônibus abrirá e eu irei até onde meu cansaço permitir, caminharei apenas até onde meus pés conseguirem, não vou voltar àquele escritório. Posso até me permitir ir à praia e tomar uma cerveja (se me aceitarem de tênis por lá, claro), mas não posso passar outro sábado perdido entre papéis dos problemas alheios, minha vida se esvai e eu nada faço para impedir.

de repente tudo para.

minha vontade de fugir some

tudo que eu mais quero

é estar neste ônibus

e sentir esse delicioso

aroma de flores

para o resto

da minha

vida.

O sol não me incomoda mais, percebi que há brilho maior e não é de uma estrela, é de uma moça que acaba de entrar no ônibus. Permito-me admira-la e penso em uma forma de dirigir-lhe a palavra. Concentro-me.

Chama-se Mariana e as semanas seguintes passaram com pressa de agir. Mariana me acompanhou em filmes fantásticos, discutimos sobre as cores de Wes Anderson, os distúrbios dos personagens do Woody e a sombriedade do Tim. Partilhamos da mesma ideologia, discutimos política e resolvemos os vários problemas do Brasil em 7 minutos. Fiquei em êxtase ao saber que detesta os mesmos escritores que eu e que os trejeitos que me irritam a tirava do sério também. Fomos à praia na chuva e a luz da lua a tornava ainda mais linda. Vimos inúmeras peças e escrevemos diversas críticas para no fim compararmos. Conheci os pais de Mariana, me adoraram logo de cara. Adotamos um cão com o nome de Juca. Dei a ela a chave do meu apartamento e logo a casa estava repleta do cheiro floral e suas roupas confundiam-se com a minha dentro do armário. Eu a amava. Escolhi um dos mais lindos anéis para pedir que Mariana fosse minha, Mariana aceitou. Puta que pariu, é o meu chefe ligando, passei do meu ponto, mais um atraso e estou fodido. A moça com um cheiro doce e a cara de Mariana foi embora, mas conseguiu permanecer em mim. Desço do ônibus e aguardo o próximo, sigo pensando na moça e no meu dia perfeito. Estou atrasado, preciso trabalhar.

ELA.

Se tem uma coisa que odeio é me atrasar. E, justamente hoje, o motorista de ônibus resolveu brincar comigo. Sabe, eu nunca tive problema para me arrumar, paro de frente para meu guarda-roupas roxo com estampas amareladas e já sei o que vou vestir. Mas hoje não é meu dia de sorte, a ressaca por causa de ontem tá foda. Foi só eu chegar na esquina da parada que o ônibus passou. Corri, corri e quase morro – não tenho mais idade para isso. Ai, ai, pelo menos o dia está lindo, pedindo aquela velha praia. Foi o que pensei. Em menos de cinco minutos a chuva começou a cair. 12:39. Nunca que vou chegar lá as 13 horas. Pera, lá vem um ônibus, será o 51?

E de repente tudo parou.

Eu não sabia o que fazer,

Tudo que eu mais queria era

Estar neste ônibus

Será que isso é Malbec?

Por dentro eu estremecia,

Sabe quando tudo em você quer desabar

Só do cara te olhar? Pois é.

Mas fingi que não o vi.

Sinceramente não sei o motivo, é instinto, eu acho. Apesar disso, meu desejo era correr e saber tudo sobre sua vida. Sentei ao lado do surfista loirinho com cheiro de protetor solar, poucas cadeiras atrás daquele barbudo engomadinho. Será que ele ia trabalhar? Porra, ele virou.

Pedro. Vinte e três anos, estagiário num escritório de contabilidade. Nas semanas seguintes eu cheguei à conclusão que ele tava na área errada, aquele cara só podia ser de humanas. Me diga, que aspirante a contador repara na fotografia de Moonrise Kingdon? Quer dizer, que contador assiste Moonrise Kingdon? Pois é, mas ele sabia. Ele sabia muita coisa. E o melhor, amava o Woody, o Burton e o lindo do Tarantino. Assistíamos Kill Bill juntinhos milhares de vezes, no chão do meu quarto ou na sala da casa dos pais dele. Vez ou outra, quando estávamos num ônibus ou em qualquer canto que o tédio aparecesse, encenávamos Pulp Fiction. “Não odeia isso?”. “O quê?”. “Silêncios desconfortáveis”. “Por que temos que falar de idiotices para nos sentirmos bem?”. ”Não sei.”. “É uma boa pergunta. É assim que sabe que encontrou alguém especial. Quando pode calar a boca um minuto e sentir-se à vontade em silêncio”. Quantas vezes passamos horas e horas discutindo sobre o aborto, ou sobre a legalização das drogas. Os discursos eram fodas, mas sempre nos entendíamos. Outro dia fomos a Ponta Negra. Era noite e ele odiava vinho com todas as suas forças, mas sempre tomava pra me acompanhar. Nessa hora choveu pra cacete - que piegas, hem, senhor Céu - ficamos ali, com a roupa toda molhada e melada de areia, dois bêbados que se amavam. Acho que aquela transa no mar foi uma de nossas melhores.

Minha mãe o adorou logo de cara, meu pai ficou meio assim, sabe como é pai. Ainda mais por que sou a mais velha. Mas com o tempo ele afrouxou as rédeas. Adotamos um cão, ele queria chamá-lo de Baurú (onde já se viu dar o nome de Baurú para um cachorro?) acabamos chamando de Juca. No dia que ele me deu a chave do apartamento nome dele eu enlouqueci, minha vontade era me mudar para lá na mesma hora. Já imaginou? Nunca moramos longe de nossos familiares. Ia ser perfeito. O papai que não ia gostar nada disso. “Que arrumação é essa, morar junto sem casar?”. Eu o amava. Ele me pediu em casamento no dia em que fizemos três anos, um dengo, tivemos gêmeas.

_ Alô! Ju, amor, tô chegando. Se preocupa não, desço já já. - Putz, ele desceu do ônibus. Droga. Droga. Droga. Por que fingi não tê-lo visto?

Nos olhamos uma última vez, pela janela. Aquele maldito ônibus partiu, levando o moço e minha vida perfeita. Merda! Odeio me atrasar. E perder amores.

Ei, motorista, peraí, que eu vou descer.

Gonzaga Neto e Luiza Matias
Enviado por Gonzaga Neto em 28/07/2015
Reeditado em 30/10/2015
Código do texto: T5326696
Classificação de conteúdo: seguro