Balanço

Eu voltava para casa desolada. Arrasada como um animal abatido. Voltava os olhos revoltosos e injustiçados ao céu. O dia me parecia uma agressão. Mais uma vez, eu era surpreendida pela falta dos homens. Eu... logo eu que por tanto aprendera minuciosamente a me acostumar com as desilusões. Logo eu, que custei tanto a habituar -me com derrotas, com a imoralidade e injustiça. Estava ali, agora com andar incerto e vacilante, vendo os rostos de transeuntes como uma sequência de imagens zombeteiras. Apenas queria chegar, num meio impulso de correr para fugir dessa armadilha que aprisionava meu tão protegido coração.

Foi quando de repente, adentrei numa rua vazia. De súbito acalmou - me o estado de espírito. Havia ainda a incessante revolta, todavia não mais me deparava com passantes confundindo -me as emoções. Aquilo era uma calma que também zombava de mim. Relutava, infante, contra a tranquilidade das folhas secas desenrolando -se num vento agitado pela calçada. Simplesmente não era conveniente aquela paz- que bem poderia ser outra traição - num momento tão crítico. Mas meus ouvidos voltaram -se para um rangir barulhento de correntes, quase numa orquestra junto ao uivar do vento naquela manhã. E com os ouvidos, voltaram -se também os olhos em seguida para um imenso pé de abacate logo atrás de mim. Inotável, o lugar era uma espécie de jardim fechado por altas grades, escondido na inquietação da cidade. O rangir vinha de um balanço artesanal muito simples. Sobre ele, uma criança que julguei ter cerca de cinco anos o impulsionava com os pés numa velocidade mediana.

A menina tinha negros e finos fios de cabelo que se prendiam num laço atrás da cabeça. O rosto, de expressão quase inexpressiva tinha um olhar apático à primeira vista. Mas em segundo instante, um olhar esperto e ao mesmo tempo bobo, que rapidamente deu de encontro com o meu, tão severo e frio. Esse contato não produziu -lhe quaisquer efeitos. Pela primeira vez naquele dia, era o encontro com um rosto que não zombava do meu azar. Também não me acolhia. Mas era tal sua simplicidade e neutralidade frente a minha dor, que quase descuido, suplicando uma pena daqueles puros olhos. Implorava por entendimento. Era somente serenidade. Implorava por amparo. Era somente paz. E isso me machucava, pois essa estranha paz confundia minha confusão. Eram olhos além da visão. Eram a minha verdade, despretensiosa.

Ela não sorria fisicamente. Mas percebia seu sorriso. Um invisível. Alma de criança que me surpreendia, pois se diferenciava de todos os homens. Mais me notava do que via. Me tranquilizava em determinado momento, sem que resistisse àquela paz.

O vento forte vinha chicotear minha face. Eu era fraca. E esse mesmo vento castigava sua pele e ela o ignorava por completo. Era a sua brincadeira, como motivo incontestável para ser dispersada. Minhas mãos, presas às grades eram comandadas por algo inexorável. Uma barreira. Uma jaula. A criança sim era dona de si. O ferro o qual agarrava com as mãos eram as correntes de seu próprio balanço, e era ela quem o conduzia... Quando quisesse, poderia ir para onde bem entendesse com aquele seu transporte. Num segundo chegava ao seu destino, fosse qual fosse... Pois seus olhos eram, sobretudo, sonhos. Estes eram o invisível que me sorria.

Ali, tudo começava a se construir. Ignorei a ignorância dos homens. Então me lembrei das minhas primeiras construções, meus primeiros castelos. Foi quando extinguiu -se completamente minha revolta. Tudo se converteu para um instinto maternal pelas coisas, pelos transeuntes. Tudo se converteu em carinho. Cravei as folhas, o chão, o outro lado da rua, o céu e tudo ao mesmo tempo. Com humildade, eu provava de uma empatia incômoda. Eu me transformava novamente em inocência desconhecida. Até mesmo esqueci a presença da criança. E somente quando efetivou -se essa minha relação com o mundo, fitei - a novamente. Dessa vez, a surpresa. A menina me sorria com um sorriso escancarado e destemido. Não era aprovação pela minha nova atitude. Era simplesmente sorriso. E num susto gritou - me com uma pronúncia infantilizada uma única palavra. "Tchau ". Acenou, sorrindo, e disparou a correr até que a perdesse de vista.

O balanço ainda se mantinha vivo. Ainda permanecia a essência de uma criança ali. Em pouco estava intacto. Como uma máquina de sonhos que esperava um novo sonhador...

Beatriz Beraldo
Enviado por Beatriz Beraldo em 13/08/2015
Código do texto: T5345284
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