Na escuridão da noite.

Eu sempre acordo com a claridade do sol em minha porta-balcão, isso me faz sentir alegria de acordar todos os dias para o meu trabalho.

Minha esposa sempre acorda um pouco mais cedo, mas o barulho me desperta e eu acabo dando-lhe bom dia, e a vejo se preparando para o trabalho.

Abri os olhos, e a escuridão não me permitia ver uma palmo a frente do nariz. Pelo barulho, percebi que Aline já estava acordada.

--- amor. Acenda a luz. - disse, já colocando os pés para fora da cama.

Escutei um riso sarcástico.

--- a luz já esta acessa, deixa de ser preguiçoso e vai comprar o pão.

Levantei-me na escuridão, tropecei na garrafa de água que deixo ao lado da cama e bati com a cabeça fortemente na parede.

Aline Perini, correu ao meu encontro.

--- o que aconteceu?

--- eu pedi para você acender a luz.

--- claiton, a luz esta acessa. - retrucou ela sem o menor vacilo.

Meu Deus, eu tinha perdido a visão durante o sono.

Esfreguei os olhos várias vezes, ela estava ao meu lado, segurando em minha mão.

--- o que está acontecendo? - perguntou, ajudando-me a levantar.

Eu não sabia como falar, mas ela precisava saber o que estava acontecendo.

--- amor... eu estou cego.

Disse secamente.

--- vamos para o Hospital, talvez eu tenha tido um pequeno aneurisma, ou uma lesão vascular.

Com certeza ela olhou em meus olhos, e eu olhava para o nada.

Percebi que ela ficou exageradamente nervosa, mas também trabalha na área da saúde e sabe que nesses momentos manter a calma é o melhor remédio.

--- venha, eu te ajudo a se vestir, e vamos para o hospital, deve ser uma perda de visão temporária. Stress talvez.

Eu sabia que algo terrível estava acontecendo, mas aceitei a oferta de ajuda por dois motivos.

Primeiro, eu não enxergava nada.

Segundo, era dia do meu plantão e eu tinha que me apresentar a maternidade antes das oito.

Comecei a suar frio. Ficaria cego pelo resto da minha vida? Deixaria de trabalhar? Não poderia mais fazer os partos? Ver meus filhos, meus netos, meus amigos, minha esposa, minha família.

Meu Deus. O que estaria acontecendo.

Entramos no carro e fomos direto para o hospital. Escutava as buzinas. Conversas quando parado no sinal. Meus olhos abertos nada viam.

Entramos no Hospital pela primeira portaria, passamos pela segunda, adentramos as dependências da Recepção.

Havia dois lances de escadas e apoiei-me em Aline para não correr o risco de sofrer um acidente mais grave, se é que perda da visão já não fosse grave o suficiente.

Estávamos no último degrau, quando Simone a coordenadora da Maternidade veio correndo ao nosso encontro. Estava com a voz embargada de apreensão.

--- doutor acabou de chegar uma paciente sangrando muito, acho que é um descolamento de placenta, 36 semanas, gemelar, descorada três cruzes em quatro, já avisei o Centro Cirúrgico e já estamos entrando com ela. – a descrição do que estava ocorrendo foi feita em segundos. Eu ainda me apoiava nos braços de Aline.

Simone continuou.

--- aconteceu alguma coisa? O senhor esta passando mal?

Mantive a postura.

--- não esta tudo bem. Já estou indo para o Centro Cirúrgico. Avisou o Dr. Edson? Quem é o anestesista? Avisou a UTI NEONATAL.

--- O anestesista é o Dr. Lino, e o pediatra a Dra. Mariana. Ela pediu para chamar o Dr. Alberico, por ser um parto gemelar.

--- ótimo, vai dar tudo certo. – comecei a caminhar em direção ao Centro Cirúrgico, e minha esposa me acompanhava estupefata.

--- Claiton, como você vai operar, se não esta enxergando nada.

Foi neste instante que a escuridão dos meus olhos começou inicialmente a mostrar-me algumas imagens tênues. O rosto da Aline pareceu turvo, embaçado como um vidro fume.

Percebi que a minha visão estava voltando ao normal. Tentando acalmá-la, falei.

--- você está linda, hoje mais do que nunca. Adorei a cor do seu esmalte, rosa claro.

Ela sorriu.

--- parece que você voltou mesmo a enxergar direito, acho que foi apenas um susto.

Beijei-a suavemente, e adentrei ao vestiário.

Tudo o que eu estou narrando, ocorria em fração de segundos, minutos.

--- bom dia Japinha. – disse eu cumprimentando o meu auxiliar Dr. Edson, amigo, um homem de Deus.

--- bom dia Claiton. Aconteceu alguma coisa além da urgência? – ele indagou olhando para meus olhos, como se tivesse percebido a minha dificuldade visual, que ainda persistia, mas que aos poucos estava voltando ao normal.

--- tudo bem, apenas um mal estar passageiro. Vamos entrar, acho que a paciente já deve estar chegando.

Adentramos a sala de cirurgia e deparamos com Dr. Lino, sua auxiliar Guará, e a Dra Mariana já apostos. Dr. Alberico, chegou logo em seguida. Resmungou.

--- Jeitinho bom de começar o dia. – murmurou.

--- verifique se o aspirador esta funcionando. Deixe adrenalina preparada. – disse a Dra Mariana pediatra testando seus aparelhos. Dr. Alberico pediu outras medicações.

Guará a auxiliar, já tinha todo o equipamento do anestesista em mãos. As auxiliares abriam os campos e a caixa de cesárea.

A paciente chegou sem ser sondada, precisávamos agir rápido. Enquanto fazíamos nossos preparativos a paciente já estava sendo anestesiada. A enfermeira Neia, passou uma sonda de alívio.

Foi feito reserva de sangue. Sabíamos que o problema era muito mais grave do que naquele momento poderia ser imaginado.

Minha visão estava perfeita.

Depois de realizada a anestesia, levamos menos de um minuto para fazer a incisão e retirar o primeiro RN, logo em seguida o segundo. Duas meninas. Idênticas.

A capacidade da Dra Mariana, e do Dr. Alberico neste ponto foi quem fez a diferença. As crianças estavam paradas. Adrenalina. Aspiração. Massagem. Estetoscópio. Freqüência cardíaca.

Eu e o Dr. Edson nos preocupávamos com a paciente. A placenta tinha se descolado 50 por cento, e havia muito sangue na cavidade. Medicação para a contração uterina. Sutura rápida do tecido. Limpeza da cavidade. Misoprostol via vaginal.

Eu suava frio. Percebi que a minha visão começava a se tornar turva. Fiz a ráfia do útero. Aproximei a musculatura abdominal.

Senti uma tontura. Um lapso de escuridão em meus olhos. Escutei a voz da Dra. Mariana.

--- parabéns Dr. Claiton, as duas estão bem, agora.

Dr. Alberico, completou sempre de maneira hilariante.

--- você está velho, mas ainda é confiável. – e riu da própria afirmação.

Esbocei um sorriso.

--- parabéns a todos, principalmente a você Dra Mariana, o Alberico também. Lino, obrigado.

Obrigado a todos. – afirmei.

Tudo se apagou. Tudo se tornou escuro como breu. Coloquei o bisturi sobre os campos, e senti que o meu corpo caia como uma pluma em direção contrária a mesa de cirurgia.

Meu Deus, me ajude, murmurei antes de perder a consciência.

6 horas.

--- Acorde Claiton...

--- Acorde... Que pesadelo terrível você esta tendo, se contorcendo todo na cama.

Disse Aline, me chacolejando como um marionete. Dando tapas em meu rosto para que os meus olhos se abrissem de vez.

Vi a luz do sol entrar pela porta balcão, como sempre acontecia. Respirei fundo. Beijei a minha esposa com volúpia e prazer.

--- nossa... Acho teve sonhos eróticos. – disse ela se pondo em pé.

Sorri.

--- antes fosse. Antes fosse. – respondi.

Um novo dia iria começar, eu sentia a felicidade sair por todos os poros do meu corpo. Eu estava feliz.

Minha visão era perfeita.

Eu tinha a companhia perfeita.

Te amo Aline.

Ton Bralca
Enviado por Ton Bralca em 25/08/2015
Código do texto: T5359097
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