W.O

Só sei que não gostava de estar ali , era sempre horrível acordar pela manha e me entregar aquilo , sempre a mesma coisa . Já perdera a conta dos anos , pareciam muitos , mas ainda não era nada visto de longe , tipo , visto 50 anos adiante , tudo que eu sabia era que esses anos jamais retornariam e se eu tivesse sorte morreria e voltaria no corpo de um gato vira-lata ou com a coragem de um andarilho. Mas agora eu era um covarde , e para mudar isso precisaria de coragem mas não sabia onde havia deixado a minha , talvez debaixo do tapete da sala junto com as bitucas de cigarro . Mas nesse dia em especial ( não tinha nada de especial nele , a não ser que a comida daquele restaurante popular estava estranhamente boa ) enquanto salgava a salada , ouvi alguém dizendo na mesa ao lado :

- Ouvi dizer que o Esquartejador vai lutar . Já faz 5 anos que ele não luta mas vai desafiar qualquer homem que aceitar subir no ringue com ele .

Eu não sabia quem era esse tal de Esquartejador , mas fique interessado de subir num ringue com ele , e quem sabe lhe acertar umas boas , mas muito provavelmente tomar algumas várias boas. Ouvir isso me deixou profundamente transtornado , não consegui comer , não consegui terminar meu suco de melancia , não consegui voltar para o trabalho , segui diretamente para o bairro pobre onde eu conhecia um traficante de porta de escola , Victor era um traficante de porta de escola que vendia sal de fruta e relaxante muscular como cocaína pra as crianças do segundo grau .

Quando cheguei estava picando os comprimidos , amassando com as costas de uma colher . Esse era seu sistema de refinamento . Sua filha , a pequena Priscila cortava os cabelos da boneca com uma tesoura . Pri sentada no sofá era só uma criança de 5 anos , e Victor um pilantra de 38 . A criança não deu bola quando esfreguei seus cabelos louros encaracolados e sujos , seu pai com o um cigarro apagado nos lábios me deu um 'olá ' movendo a cabeça na minha direção . Victor era só um carinha baixinho , gordinho e careca , seus olhos , dois botõezinhos , estavam sempre brilhando , olhos castanhos , as orelhas pequenas e ordinárias ouviam tudo ao seu redor , Por isso pensei que ele pudesse saber algo sobre o Esquartejador .

A casa tinha dois quartos , um para a criança e outro para o pai e a mãe que eu quase nunca via por ali . A mãe tinha um emprego , trabalhava com costureira durante o dia , e nos finais de semana servia mesas num restaurante italiano gerenciado por uma família chinesa . Ela dizia que essa era a prova irrefutável da globalização , e se orgulhava de fazer parte disso .

Então contei a Victor o que ouvi no restaurante popular .

– Quem é esse Esquartejador ?

Perguntou ele , e eu respondi que não sabia .

– Mas disseram que vai voltar a lutar , e desafia qualquer miserável que estiver a fim de subir num ringue a vence lo .

O micro-ondas apitou , Victor foi até ele e tirou um prato com uma crosta branca de dentro .

– Comprimidos relaxantes musculares .

Ele disse jogando tudo na mesa de vidro junto com os outros comprimidos moídos .

Victor me lembrou de minha última briga . Quatro pontos na cabeça e uma costela quebrada . Nunca fui grande coisa brigando , nunca fui de brigar , e não que eu achasse desnecessário , algumas vezes é preciso mostrar quem é que manda , mas a derrota é como aquele queijo podre , Casu Marzu , tem de se vender caro . Se esforce e garanta que não vai cair logo no primeiro soco . No final , se você for duro na queda , será respeitado .

Priscila se levantou do sofá e foi em direção do pai mostrar o novo penteado da boneca .

– Olha papai, olha !

Ela estava descalça , a criança , os pés estavam pretos e o vestido florido parecia ter sido feito com uma toalha de mesa usada .

Pai acendeu o cigarro e pegou a boneca , ajeitou o cabelo da filha e disse :

– Agora só precisa de um banho, gatinha.

– O.k. , vou lavar ela na pia .

As mãos de Pri manchadas com tinta azul de caneta apanharam de volta o brinquedo que foi despindo no caminho entre a mesa e a pia . Tinha um banquinho ao lado do fogão e ela usou para alcançar a torneira , enfiou um trapo no ralo e a fez de piscina .

Victor tinha um punhado de pedaços de sacolinha de mercado picado sobre a mesa . Com uma colherzinha de café pegava uma porção da mistura de relaxante muscular , sal de fruta e sal e colocava dentro de um pedacinho do plástico , dai enrolava e lacrava com fita adesiva . Haviam 3 cores de fita , verde , amarelo e vermelho .

– As lacradas de fita vermelha são de melhor qualidade , mais fortes , as de amarelo meio termo e as verdes para iniciantes .

Me disse ele . Cada cor tinha seu preço .

– Verde 5 ; amarela 10 ; vermelha 20 .

No final das contas se tratava do mesmo produto , mas nada como a propaganda , isso é o que faz o negócio .

– Você tem que ver , aquela molecada me agradece sempre que trombam comigo na rua , eles dizem : cara , aquele produto da semana passada estava demais . E eu me segurando para não rir digo : só o melhor para você , Artur , você sabe .

Fui até a geladeira e apanhei uma cerveja . Voltei com duas , uma para mim e outra para Victor . Ele continuou .

– A pior parte são as cobranças , sempre tem um espertinho que compra fiado e depois se esquece propositalmente de pagar . Claro que não sujo minhas mãos batendo de porta em porta , simplesmente dou uma dúzia do meu melhor produto para o primeiro vagabundo que encontrar na rua e digo : vá até lá e pegue meu dinheiro .

Victor se gloriava da vida que tinha , uma bela vida segundo ele . Tinha algo fedendo no lugar , era podre , vinha de todos os cantos , cheiro podre que depois de certo tempo começa a incomodar , e depois de mais algum você se acostuma . Eu não queria me acostumar com esse cheiro . Me despedi de Victor e sua menina de pés sujos . Quando ganhei a rua dois jovens bem vestidos se destacavam perdidos com suas bikes de freio a disco numa esquina . Quando me viram pedalaram em minha direção , perguntaram sobre '' a parada ''.

– Sabemos de um tal de Victor .

Disse um deles .

– É ?E com sabem dele ?

Perguntei .

– Todo mundo conhece o produto dele . Vamos fazer uma festinha e queremos uma porção da boa .

Disse o outro , e o outro disse :

– Isso , só coisa fina .

O outro confirmou :

– Só coisa fina , chefe .

Lhes indiquei o caminho oposto .

- Vocês estão duas quadras no caminho errado . Voltem duas quadras e dobrem a direita , vão ver uma farmácia , pergunte ao cara do balcão sobre relaxante muscular , esse é o código .

- Eu te disse cara , eu te disse para dobrarmos a direita .

Bravejou o mais novo de boné .

Me agradeceram e se puseram a pedalar . Mas antes que se afastassem muito perguntei :

– Hei , algum de você ouviu falar de um tal de Esquartejador ?

Eles simplesmente se entreolharam e se puseram a pelar mais rápido .

26/08/2015

08H29M

Cleber Inacio
Enviado por Cleber Inacio em 26/08/2015
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