A benção de ter ido para o ofanato

Eu tinha nove doze anos, estava cansada de ficar em casa sem fazer nada e resolvi sair, dar umas voltas na rua, ver a quebrada onde morávamos. Nossa casa era simples, no alto, na pior parte da favela. Não tínhamos nem o que comer às vezes. Piamos esmolas nos faróis, minha mãe não tinha emprego fixo, mas tinha seis filhos. Nosso pai tinha ido embora e não mais voltado. Ela nos amava. Se virava como podia para não nos deixar passar fome. Às vezes catávamos uns brinquedos no lixo, ela lavava, arrumava e nós brincávamos com eles como se fossem os mais caros das lojas. Dormíamos em colchões doados, espalhados pelo chão, com papelão por baixo pra ficar mais quente. Tínhamos uma vida sofrida, mais éramos felizes. Vivíamos na rua brincando. Nossa mãe sai pra arrumar alguma coisa pra fazer, ou vender, e quando não íamos com ela ficávamos na rua até ela voltar.

Eu ia distraída pela rua, não vi o carro vindo. Ele me atropelou. Eu desmaiei. Acordei uma semana depois, toda cheia de fios, presa a cama da UTI. Não me lembrei de nada na hora, minha mãe estava ao meu lado. Tinha deixado meus irmão com a vizinha e ido ao hospital ficar comigo. Cuidou de mim todo o tempo. Ia em casa ver os outros e voltava. Não tínhamos dinheiro. Os médicos e enfermeiras ajudavam com o pouco pra ela comprar comida pro meus irmãos. Todo mundo ajudava com pena da gente.

Então um dia, chegou uma moça e chamou a minha mãe pra fora da sala. Ela foi. Voltou chorando. Disse pra mim q ia ficar tudo bem. Que ela tinha que ir, mais a moça iria cuidar de mim. Não permitiram a ela, nem terminar de cuidar de mim. Ela foi retirada do quarto aos gritos pela policia e pelas enfermeiras. Eu estava assustada. Já estava no quarto me recuperando. Tinha quebrado a perna, o braço, as costelas do lado direito. Tinha tido traumatismo craniano, já estava há vinte dias internada, não tinha como ir pra casa no estado em que eu estava, nas condições em que vivíamos.

- Cadê minha mãe? – Perguntei a moça que estava agora comigo.

- Ela teve que ir embora. Você terá todo cuidado de quem precisar, e depois irá pra uma nova casa. Lá terá tudo de que precisar.

- E meus irmãos? E minha mãe? – Falei chorando.

- Seus irmão já estão lá. Sua mãe não poderá ir. – Ele me olhou com pena e segurou minha mão. – Você já é uma moça. Então vou te contar tudo. Sua mãe deixou seus irmãos só em casa na rua esses dias pra cuidar de você. Denunciaram ela e ela perdeu a guarda de vocês. Fomos a sua casa, não tem como ela ficar com vocês. Só se arrumar um emprego e puder dar condições humanas para vocês viverem.

Eu entendi. Sabia que ela tinha razão. Mais sofri mesmo assim. Então quando tive alta dois dias depois fui para o orfanato. Meus irmãos estavam lá. Quatro meses depois, já recuperada, eu ainda tinha esperança que minha mãe fosse nos buscar. Não queria ficar longe dela. Ela ia nos ver. E eu ficava feliz.

Um dia chegou a assistente social. Disse que todos nós seriamos adotados por famílias europeias, a minha irmã de quatro anos tinha sido adotada por ela, a assistente que estava a minha frente. Restava eu e meus quatro irmãos. Minha irmão de dez, um de cinco, um de dois, um de um ano.

- Eu não quero ir. Não quero ficar longe da minha mãe!

Uma amiga do mesmo orfanato tinha ido com uma família de gringo. Foi até o hotel e pediu pra voltar. Não gostou. Tinha um período de adaptação onde eles ficavam com a gente no Brasil, num hotel. Eu tinha medo de não gostar e não queria ficar sem a minha mãe. Então fiquei. Meus três irmãos mais novos foram embora. Dias depois há de dez anos foi adotada por uma família do interior de São Paulo e eu fiquei lá. Perto da minha mãe. Sentia falta dos meus irmãos, mas sabia que estavam melhor que com ela.

Comecei a estudar, a ter educação, limites, regras, cuidados que em casa minha mãe não teria condições de nos dar. Quando fiz quatorze anos uma mulher me adotou, queria alguém já grande pra ajudar com a filha dela que era pequena. Eu tinha casa, comida, tudo do bom e do melhor, cuidava da filha dela de três anos, da casa, era maltratada e servia de escrava para ela. Fiquei um tempo lá aguentando. Então seis meses depois, na visita da assistente eu contei tudo e outra vez, voltei para o orfanato.

Eu gostava do orfanato. Lá eu era bem cuidada, bem tratada. As freiras gostavam de mim. Eu as ajudava com as crianças pequenas. Agradeço a Deus por tudo. Por ter me tirado da minha mãe e me levado para lá. Se isso não tivesse acontecido, eu não teria a educação que tenho hoje, não teria estudado. Talvez estivesse nas ruas drogada, me prostituindo pra ter o que comer, ou onde morar. Agora aqui estou, uma pessoa de bem, com um bom coração. Eu ajudo as pessoas, se tenho duas coisas divido, por que é assim que aprendi. Se dividi, Deus multiplica. E nunca me faltou...

Quando sai da casa da minha mãe adotiva, ela com raiva, me acusou de roubo, o juiz e as freiras me conheciam, ficaram do meu lado. Ela foi processada por roubo, roubava as amigas do serviço. Tinha uma monte de cartão nas coisas dela. Ficou ainda uns dias presa por isso. Por que Deus é justos. Tentou me prejudicar e acabou com toda a verdade descoberta e ela condenada.

Vivi no orfanato até fazer dezesseis e ir para um lá de adolescentes. Sai de lá com dezoito anos. Trabalhava já num restaurante. Conheci meu marido. E fomos morar juntos. Trabalhamos hoje como caseiros num sítio no interior de São Paulo mesmo. Não tenho raiva da minha mãe. Agradeço a tudo que me aconteceu. Agradeço a Deus.

Sabe, nunca mais tivemos notícias dos meus irmãos que foram para a Europa. Vejo minha mãe sempre que dá. Ela se casou e teve mais três filhos, vive bem com o marido e com eles. Eu só tenho contato com a minha irmã que foi adotada pela assistente social. Ela tá bem. Tem faculdade, carro, viaja, não quer casar. Tá muito bem, às vezes me ajuda com dinheiro se eu precisar.

Eu tenho um filho, mais quero ter mais uns quatro, é bom família grande. Tenho saudades das pessoas do orfanato. Dos meus irmãos que foram embora. Nunca me arrependi por não ter ido para Europa. Estou feliz aqui. Não tenho dinheiro, sou pobre, mais sou feliz. Tinha que ser assim. Se não tivesse sido, nem sei como seria... onde estaríamos...

Agradeço a Deus por tudo, pela minha vida. Não digo que sofri, digo que vivi e aprendi...

karla geane
Enviado por karla geane em 22/09/2015
Código do texto: T5390240
Classificação de conteúdo: seguro