Uma manhã inesquecível

Há um ditado popular, famoso pelo uso, que nunca devemos usar um sapato novo para andar grandes distâncias. E agora olhando para meus calos vermelhos, enquanto tento massageá-los para esparramar o edema, me lembro disso com certa ironia. Tudo isso porque está calor e a sandália é parcialmente aberta, daquelas com muitas tiras delicadas. Mas eu precisava sair, pois sábado é o único dia em que eu consigo vir ao centro da cidade com tranqüilidade.

Como me mudei recentemente para esta, o que mais me dá prazer é descobrir lugares novos e principalmente comidas novas. Há muito eu estou de olho em um café situado em uma esquina do centro da cidade. Ele fica de frente a uma praça e suas melhores mesas ficam embaixo das árvores. Mas como imaginei que uma xícara do café deve ser do mesmo preço de uma garrafa inteira, nos lugares que eu geralmente freqüento, escolhi um dia especial para me agraciar. Seria necessário muito para me fazer esquecer a dor nos pés.

Escolhi uma mesa perfeita. Sorri quando o garçom me trouxe o cardápio e sorriu me desejando boas vindas. Quase lamentei não poder freqüentar esses lugares. Às vezes eu sentia certa nostalgia, e lamentava minha condição de pobreza. Embora eu sempre dissesse pra mim mesma que podia ser pior. Sim... eu sou uma vitoriosa. Eu sou uma vitoriosa e mais ainda porque posso pagar um café num lugar onde as bolsas das clientes custam mais que meu traje inteiro. Muito mais...

Fiz o pedido igual criança empolgada em uma loja de brinquedo. Cappuccino com chantilly e pão de queijo. Pra que mais? Eu adoro cappuccino... e com pão de queijo ainda, fica mais que perfeito. Quando o pedido chegou primeiro senti o aroma, depois degustei. Nessa seqüência exata. Perfeito.

Mas quando chegou a conta... bem... parece que o queijo estava muito curado... mas respirei fundo e peguei a bolsa. E com certo desespero descobri que estava sem um tostão. Droga... aquela maldita loja... lojinha... boteco de roupas que não aceitava cartão de crédito. Mas me lembrei do cartão de crédito... embora eu jurei não mais usá-lo pois ele era o principal motivo de minhas insônias, ele não, coitado, o que a empresa de cartões me cobrava por usá-lo. Mas vá lá... quem tá na chuva é pra se molhar.

Entreguei o pedaço de plástico valioso e tentei me distrair com a paisagem. Mas logo o garçom retornou com o plástico na mão e uma cara estranha.

- sinto muito senhorita, mas seu cartão parece estar bloqueado... Eu posso tentar passar outro, se a senhorita desejar...

Que outro, moço? Quase gritei em desespero... desde quando pobre tem dois cartões? Principalmente quando não consegue pagar em dia o único que tem? Droga... pela milésima vez paguei a conta atrasada e claro, ainda não computou no sistema. Respirei fundo e tentei pensar com calma. Nem me dei ao trabalho de olhar pro lado pra pescar algum conhecido. Definitivamente eu não tinha conhecidos ali.

- Se você quiser pode acertar comigo depois... eu me entendo com o gerente...

Eu olhei assustada para o moço. A cara dele era de pura piedade. Aquilo me incomodou mais que não poder pagar a conta, porque eu tinha dinheiro, mas não estava em meu poder usá-lo naquele momento. Tentei sorrir.

- obrigada... mas isso não será necessário... Se você puder me emprestar seu telefone eu vou fazer uma ligação e resolvemos esse problema em poucos minutos. E enquanto esperamos eu vou querer outro café...

O rapaz sorriu aliviado. Coitado... certamente aliviado por ficar livre de uma conta que não era dele. Mas ele me pediu para acompanhá-lo. Quase perguntei onde iríamos quando me lembrei do telefone. Droga. Eu estava sem crédito para fazer chamada. Só recebia e como não conhecia a técnica da telepatia, engoli meu orgulho e entrei. Mas parei no vão da porta pois a penumbra me cegou. Lá dentro era muito melhor que a poeira quente do asfalto. Havia luxo nos pequenos detalhes. Mas o rapaz continuou andando e me mostrou o telefone em cima do balcão, em um canto da extensa lasca de madeira lustrosa.

Peguei o aparelho como se minha vida dependesse daquele gesto. Disquei o número do vizinho da frente, dono da casa nos fundos onde eu morava com meus filhos. Quando ele atendeu pedi para chamar qualquer um deles. Mas quando uma voz familiar respondeu do outro lado, meu coração saltou de alivio e meu ouvido doeu, pois meu filho tinha um timbre muito alto. Então com o fone afastado da orelha, como se o pequeno aparelho tivesse a função viva voz, travamos uma interessante conversa.

- meu filho... preciso que um de vocês traga algum dinheiro pra mim... – dei a minha localização – vê se o Gaspar pode trazer vocês aqui...

- Ih! Mãe... num vai dá, não...

- como é que é?

- a gente também tá sem dinheiro... juntamo tudo pra comprar picolé do menino que tava vendendo na rua... não sobrou nadinha... nem uma quirela...

- vê com algum visinho... eu estou esperando...

Um silêncio constrangedor se seguiu. Escutei, escutamos, pois vi que havia mais três homens do outro lado do balcão, observando a cena com muita curiosidade, além de alguns fregueses igualmente sem o que fazer. Logo ouvimos meu filho repetir em alto e bom som que “ a mãe tá encrencada, quem podia fazer a caridade de ir resgatá-la”. E ouvi barulho de passos apressados chegando perto do telefone. Logo uma pequena reunião se formou em torno do aparelho. Meu filho resumiu minha história.

- mas... como? Será que a mãe não vai aprender nunca?

- Enquanto tiver a gente pra resolver os problemas dela, não...

- Mas até quando vai ser assim?

- Até quando a gente acudir ela... Porque ela não conferiu a bolsa antes de entrar na padaria? Agora fala pra ela ir lavar pratos... ela criou quatro filhos sozinha, nunca passamos fome nem andamos pelados, tenho certeza que seja qual for o problema dela, ela vai tirar de letra... É só ela por a cachola pra funcionar...

Meu filho voltou a falar comigo. Eu mal conseguia respirar.

- Ouviu, né, mãe? A senhora foi voto vencido... Lamento... mas nós te amamos muito... mas não fica triste não que todo preso tem direito a um telefonema, viu? A gente te ama...

Em seguida eu, e todos os presentes, ouvimos o barulho da linha interrompida. Não consegui olhar pra ninguém. Apenas estava tentando buscar o ar para respirar, pois o ar me pareceu meio pesado. Quando vi alguém se levantando ao meu lado e falando com quem estava do outro lado do balcão.

- Por favor... inclua a conta dela na minha.

Meu orgulho impeliu minha voz pra fora da garganta e virou meu pescoço na direção da voz suntuosa.

- Nada disso... eu mesmo gosto de lidar com meus problemas... você não ouviu o menino?

Mas antes de terminar de falar a solução brotou na minha mente. Lavar pratos, jamais... Isso era o último recurso ou o principal para quem não tinha talento. E eu sou muito talentosa e agradeci a Deus naquele momento por não me deixar poupar esforços para aprimorar o único talento que eu tenho: desenho. Eu estava carregando uma sacola recheada de coisas de papelaria. Esqueci que boa parte do meu dinheiro havia ficado lá. Me sentei em uma mesa próxima e tirei o bloco de desenho e os novos lápis pastel caríssimos. Minha idéia era fazer eles render algum dinheiro, mas não fazia a menor idéia de como. Mas achei que seria um bom começo para eles.

Rapidamente relanceei os olhos pelo ambiente e calculei que os homens do balcão não eram simples empregados. Embora todos usassem um uniforme havia um ar de superioridade neles. Mas meu olhar pousou no garçom que me atendeu. Ele acompanhava a cena com muita expectativa e me dediquei a desenhá-lo. Em poucos minutos uma caricatura perfeita dele estava pronta, onde eu enfatizei a qualidade e discrição do serviço prestado por ele. Mas entreguei o desenho para o homem mais velho atrás do balcão. Ele pegou o desenho e enquanto segurava o papel com certa ansiedade, fui falando.

-esse desenho ficará muito bom no seu cardápio e talvez no letreiro da frente... pois uma das coisas que eu mais gostei no seu estabelecimento foi justamente a qualidade e a discrição do seu funcionário ao lidar com meu problema. Em outros lugares certamente todos os clientes já teriam dado conta da situação. Então certamente eu voltarei nesse estabelecimento mais vezes, mas não se preocupe, irei conferir o dinheiro antes. Então se pudermos quitar minha dívida, agradeço muito...

Mas antes dele responder o homem que antes havia oferecido para pagar minha conta se levantou e pegou o papel da mão do outro. E também falou admirado.

- você desenha muito bem... pode ganhar muito dinheiro com isso...

- Sim... eu sei... mas o pode não deixa... quem vai se interessar por isso? Quer dizer... o que pagam não compensa o material que eu gasto...

Ele tirou um cartão do bolso e me entregou.

- Esse amigo tem uma participação em um jornal... acredito que ele vai ficar muito interessado se você tiver um olhar crítico para algumas celebridades de nossa cidade... tirinhas são muito famosas, sabia?

É claro que eu sabia... mas o que eu não estava entendendo era porque o moço estava tão interessado nos meus problemas. Coloquei o cartão na bolsa, mas sem demonstrar muito interesse. Me despedi com um aceno de cabeça e me virei para quem eu acredito ser o proprietário, o qual falou comigo agradecido.

- Esse desenho paga muito mais que o seu café... fique a vontade para vir saboreá-lo por nossa conta, sempre que passar por aqui...

Coitado... ele que não sabe que eu trabalho a poucos metros dali. Mas me limitei a um muito obrigado discreto e o pensamento que ainda havia pessoas bondosas me confortou.

Mas logo um homem gigante entrou afobado no estabelecimento. Ao me ver falou grosseiramente comigo e me estendeu a carteira.

- Os meninos falaram que ocê tá com problema... eu tava aqui perto e parei...

Eu precisei segurar o riso, pois a situação estava ficando cômica. Mas tentei falar com muita propriedade. Aquele era um vizinho que eu sabia ter uma quedinha por mim. Meus filhos não tinham nada que apelar pra ele. Mas quando eu chegasse em casa teríamos muito que discutir. Eles não perdiam por esperar.

- e se sua mulher desconfiar que você estacionou em lugar proibido para pagar uma conta minha... cara?!?!... Há muito o sofá não te cabe... – o homem pareceu não ter entendido, pois ficou sem reação. – mas agora tá tudo resolvido... eu já paguei a conta e ainda fiquei com crédito... então pode voltar pras suas entregas e pra sua esposa... mas obrigada...

O homem saiu não tão satisfeito e eu voltei a atenção para os homens no balcão. Mas eu vi que o garçom me olhava com uma cara muito divertida. Gostei dele. Alto e forte, não gordo, olhar sereno. Ele não parecia se envergonhar de segurar uma bandeja.

- A mulher dele dá duas de mim e é muito mais brava que eu...

- Você tem carro?

- Não...

- e se não tem dinheiro, vai embora como?

- Eu moro no centro da cidade... o que mais tem por aqui é casa velha sem garagem pra alugar...

- Se importa se eu te perguntar uma coisa?

Eu o olhei atentamente. Ele parecia estar se divertindo com o pensamento dele. Assenti meio receosa. Eu senti que lhe devia isso.

-Seus filhos... que idade eles tem?

- 24, 20, 20 e 18...

O moço não pareceu espantado. Aliás, parecia agora mais irritado que divertido.

- E eles sempre te socorrem desse jeito?

Eu me assustei com a reação dele, pois ele parecia bem irritado. Precisei defender meus filhos.

- Não... na verdade eles são muito protetores... acontece que eles estão certos... eu deveria ser mais cautelosa... por sorte vocês foram gentis, e como essa foi a primeira vez que isso me aconteceu, acredito que foi melhor assim. Mas eu faço o mesmo com meus filhos... eu nunca fui de tomar as dores deles e menos ainda de me desdobrar para resolver os problemas deles. E filho aprende muito mais com nossos exemplos, do que com a teoria que despejamos na cabeça deles... se você quer que seu filho coma verdura... seu prato deve ser colorido... se você quer que seu filho não fale palavrão, sua boca tem que ser um canteiro de rosas... e por aí vai...

O moço não pareceu muito convencido. Eu pedi o telefone emprestado novamente e repeti o procedimento. Quando um dos gêmeos atendeu...

- Meu filho... o garçom que me atendeu está indignado com a forma que vocês me trataram no telefone agora a pouco...

- Sê já terminou de lavar os pratos?

Eu tive que rir, mas baixinho.

- Sim, meu filho... sim... estão todos no escorredor...

- Ele é solteiro?

Eu pensei não ter ouvido direito e vi o rapaz sorrindo em concordância. Meu filho pareceu ter visto ele responder.

- E relativamente jovem e bonito?

Eu me recusei a analisar essa pergunta, mas senti minhas bochechas ficando vermelhas. Meu filho continuou em disparada.

- Fala pra ele vir aqui em casa hoje... nós vamos fazer um churrasco e vai ser um excelente momento pra ele conhecer a nossa rotina familiar... mas cuidado que ele nunca mais vai querer defender a senhora... Ah! E aproveitando que ele está sendo muito benevolente, pergunta se ele não quer estender seus modos caridosos e fingir ser o namorado da senhora... só por hoje... é que tivemos que convidar o Jorge, porque ele tava no açougue na hora que a gente saiu com as sacolas e não teve jeito de escapulir dele... mesmo porque ele vai precisar voltar aqui e ver aquela goteira... e nós definitivamente não vamos pagar serviço mal feito, então...

O telefone foi novamente desligado. Mas eu demorei a por o fone no gancho. Fiquei tão desolada com a previsão do meu fim de sábado que até me esqueci das companhias.

- É tão ruim assim?

Era o moço agora sorridente falando comigo.

- Não... é uma verdadeira catástrofe... sem comentários...

- tudo bem... eu aceito...

- o que?

- Ser seu namorado por uma noite...

- Mas eu não... eu não sou esse tipo de pessoa... meu filho não quis fazer essa insinuação... aliás... somente quem conhece esses meninos é que podem...

- Então... é exatamente isso que eu quero fazer... conhecer seus meninos, mesmo porque não poderemos ter nenhum contato mais íntimo numa casa cheia de filhos e... fãs...

Eu o olhei detidamente. E me demorei alguns minutos nessa contemplação.

- Me desculpe... mas não nos conhecemos...

Ele estendeu a mão.

- Eu me chamo Francisco e esse é o meu café...

Custei a emitir a voz e senti o rubor subir novamente. E o gosto do café e as cócegas da espuma de chantilly me vieram à mente.

- Eu me chamo Rita e tenho quatro filhos...

- E um ex marido?

- Não... viúva...

- Há muito tempo?

- Uns dez anos...

- E ainda solteira porque?

- Eu tentei... Deus é testemunha que eu tentei...

O moço gargalhou e pediu meu endereço. Depois perguntou se podia levar o pai dele. Quando eu assenti meio abobada, ele apontou o senhor sorridente atrás do balcão. Depois ele falou que os outros dois rapazes eram irmãos dele, que estavam ali dando uma força no atendimento, pois no sábado o movimento era grande. Eu não vi quando eu soltei essa pérola.

- Meus filhos estão procurando um trabalho de meio período, para ajudar nas contas das faculdades...

- Eu estou procurando pessoas de confiança para me ajudar com a burocracia e o atendimento no balcão... Quanto você ganha no seu trabalho?

- Não mais do que você poderá me pagar, com as melhoras que iremos fazer aqui... principalmente se eu remodelar seu cardápio... a cara dele, porque o café está perfeito... o pão de queijo então...

Eu não me lembro das palavras exatas que usamos na despedida, apenas sei que também não senti as bolhas nos meus pés. Apenas vi, quando tirei o calçado, o sangue manchando a sandália, mas quem se importa? Certos detalhes foram feitos para serem ignorados. Minha atenção agora estava totalmente voltada para o que eu iria usar a noite. E nem me lembrei de dar bronca em meus filhos.

Lucilia Martins
Enviado por Lucilia Martins em 19/10/2015
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