Rastros do tempo

Quando eu era jovem, isso já faz um tempinho, garotas bonitas e namoradeiras me dirigiam sorrisos e olhares que inflavam minha vaidade. Durante algum tempo, não sei quanto, foi assim. Eu me achava, então, o dono do mundo e nem me passava pela cabeça que esses olhares e esses sorrisos representavam apenas um momento. Ingênuo, não tinha consciência de que aquilo que às vezes julgamos ser para sempre pode acabar em pouco tempo.

Comecei a acordar quando um dia, assim de repente, numa loja, uma mera pergunta atingiu-me como uma punhalada na alma, porque acabara de desnudar à minha frente a mais cruel realidade:

-Posso ajudá-lo, senhor?

Claro que não respondi, não poderia ser comigo. -

- Senhor, posso ajudá-lo? - ela insistiu.

Olhei em volta: era uma pequena loja de calçados, na qual apenas duas mulheres experimentavam sapatos. Eu era o único homem. Então fiz à simpática e sorridente vendedora uma pergunta que beirava à idiotice:

- Está falando comigo?

- Sim, respondeu ela gentilmente.

- Ah, está bem, só estou olhando, obrigado.

E saí da loja, meio zonzo, pisando nas nuvens e não me sentindo nenhum pouco com cara de “senhor”.

Em casa, durante um tempo que me pareceu uma eternidade, fiquei diante do espelho, procurando uma razão para a postura da vendedora. Não encontrei. Continuava tão jovem quanto antes, como sempre fora. Meu rosto continuava liso, sem nenhum indício do rastro do tempo. “Aquela garota não está boa da cabeça", pensei, "ou será por causa destas entradas na testa, talvez um pouquinho de nada maiores, agora"? É, de fato estou com menos cabelo, mas que nem dá para uma pessoa estranha perceber. Acho que a barriga também já não é a mesma” - levantei a camisa e bati na barriga. Estava firme, talvez um pouquinho rechonchuda, coisa à toa, só isso, de resto estava o mesmo de sempre.

No entanto fiquei triste. A depressão tomou conta, mas passou. Aprendi a conviver com o tratamento respeitoso e até a gostar; afinal, o tempo passa para todo mundo. Durante muitos anos foi assim. Os filhos iam crescendo e o casamento perdera a graça.

Para ir ao trabalho, pegava o ônibus no ponto a frente do prédio onde morava. Fazia parte de minha rotina. Um dia, porém, tão logo adentrei o coletivo, lotado como sempre, muita gente em pé, uma garota, mais que depressa, levantou-se e, educadamente, ofereceu-me seu lugar.

-Não, muito obrigado – respondi – estou bem em pé, estou habituado, pode ficar na sua poltrona.

-De jeito nenhum – ela respondeu – minha educação manda que ceda meu lugar às pessoas mais velhas.

Fiquei lívido. Pessoas mais velhas? Eu, velho? Era só o que faltava.

Aquele dia não foi nada bom, fiz tudo errado no trabalho. Durante um mês, minha cabeça esteve ocupada com o problema. Para mim era, sim, um grande problema. Mas passou. Semana passada, no entanto, quando estava para esquecer, a questão ressurgiu, cruel, na fila do banco. É claro que eu estava na fila comum, bem lá atrás. Era o meu lugar. Mas o caixa não pensava da mesma forma e me chamou, em voz alta, para o seu guichê. A princípio fiz de conta que não ouvira, mas meu colega de fila, a minha frente, me chamou a atenção:

-O senhor pode ir, é o caixa preferencial.

Fui, mas com as orelhas pegando fogo.

Quando saí do estabelecimento, a pessoa que me incentivara ainda estava lá, não andara um passo. “Pelo menos fui atendido na frente de todo mundo”, pensei.

Esses dias, pedi a uma atendente, em um guichê de uma repartição pública, uma explicação sobre um documento. Ela me olhou, sorriu simpática e começou, com a maior paciência do mundo, a me explicar, minuciosamente item por item. Eu só não entendera um pequeno detalhe, no primeiro parágrafo, mas ela fazia questão de explicar, demoradamente, o texto todo. Isso demorou mais de cinco minutos.

Saí do local acreditando que, de fato, o mundo conspirava contra mim. Eu não sou um pobre velhinho. Vá lá, sou um homem de muitas experiências, bem rodado, por assim dizer. Concordo até com “um senhor idoso”, mas velho não. Não aceito esse rótulo, de jeito nenhum, no entanto já me sinto bem com minha idade. Sou uma pessoa bem vivida, experiente, saudável, sonhadora, que traça metas de vida e as persegue.

Hoje tenho consciência de que sou o que sou, em razão ter vivido o que vivi. Sou, assim, a soma de minhas experiências, o resultado das escolhas que fiz, mas ainda em construção, continuo aprendendo todos os dias e mudando.

MCSobrinho
Enviado por MCSobrinho em 01/11/2015
Reeditado em 19/11/2023
Código do texto: T5434646
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