A Feira do Igapó

Hoje acordei bem mais cedo que o normal, sete e meia, com uma puta ideia na cabeça. Não lembro a última vez que me levantei nessa hora. Nem a última vez que tive uma puta ideia. Minhas madrugadas sempre se alongam mais do que o normal, tentando escrever alguma coisa inútil sobre as minhas experiências diárias. Ou noturnas. Pra ser sincero, não ando dormindo bem e meu corpo insiste em despertar mais cansado do que quando foi deitar. Será que tem a ver com a abstinência? Talvez. Minha boca tem amanhecido seca demais. Minha cabeça também não anda nada fresca. As crises de ansiedade estão mais frequentes. Há dias que não escrevo um conto ou uma crônica por causa disso. No começo achei que toda a tremedeira fosse Parkinson ou coisa do tipo, mas o psiquiatra disse que não passavam de descontrole emocional e os remédios me ajudariam. Só que pra isso dar certo eu preciso parar de beber. É ai que eu me ferro. Fico livre de uma e doente pela outra. Três semanas e quatro dias e meio sem colocar uma gosta de cerva na boca. Três semanas e três dias e meio sem conseguir finalizar um texto sequer. O último era crônica sobre sutiãs, findei mudando os rumos e descrevi como era uma merda ter que ficar sem beber. Aquilo tava me agoniando. Mesmo fazendo só um dia. Já disse que hoje tive um puta ideia? Na mesa, enquanto tomava aquele bendito café que só mainha sabe fazer, pensei em diversas maneiras de desenvolver de forma legal, mas só conseguia pensar que tá chegando a sexta-feira e ainda não sei se vale a pena sair. Vai que eu esbarre na Juliana. Pior! Vai que eu esbarre na Juliana se pegando com alguém. Melhor ficar em casa mesmo. E outra, sair e ficar sóbrio é tipo oral de camisinha.

_ Até que acordou cedo hoje, hein, menino.

_ Tentei voltar a dormir mas tá osso.

_ Se soubesse tinha chamado você pra ir na feira comigo.

Feira. Eu até tinha esquecido que isso existia. Menos, é claro, às quartas quando passo pela Bernardo Vieira a noite, a Feira do Carrasco nunca te deixa esquecer como o cheiro de peixe pode ser desagradável. Contudo, essa feira em especial, a do Igapó, me traz lembranças da época de boy. Bem das antigas mesmo.

Lembro que foi o Kayo-Pé-de-Bicho que me chamou a primeira vez pra ganhar dinheiro por lá. Era simples, ele pegava o carrinho de mão do pai e ficávamos esperando que alguma senhora nos desse algum trocado, geralmente 1 real, pra levar as sacolas dela até em casa. Era uma espécie de status pros boyzinhos do bairro. E dava altas brigas. Uma vez o Maicoudouglas roubou dois cliente de Junin-buxo-de-kisuqui. Foi o fight mais engraçado que já vi. Com direito a concentração de ki e derrubar o carrinho com as sacolas e tudo. Eu demorei até ter meu próprio carrinho de mão, passei um tempo aprendendo as manhas do ofício com o Kayo. Lembro como se fosse hoje a felicidade que foi ir naquele ferro velho e trocar os vinte e quatro e sessenta que eu tinha ganho ao longo de dois meses pelo os restos de um carrinho de mão, que ainda tive que pedir ao tio Janilson que me ajudasse a consertar e pintar. Na outra terça feira lá estava eu e meu carrinho adesivado com o escudo do Mecão, esperando um novo cliente.O movimente sempre era intenso e dava pra ganhar uns trocados para comprar bagana e passar algumas horas jogando Super Nintendo no seu Américo.

_ Luís?

_ Oi.

_ Tava no mundo da lua de novo, meu filho?

_ É que você falou em feira e eu lembrei da época que descia lá pra do Igapó com o carrinho de mão.

_ Naquela época você nem me pedia dinheiro.

_ Ei, o que a senhora quer dizer com isso?

_ Nada, ora.

_ Senti um ironia no seu tom de voz. Isso foi um indireta?

_ Se a carapuça serviu – disse-me sorrindo.

Naquela época você não me pedia dinheiro. Como assim? Ela sabe tudo que estou passando. Essas crises. E que em Natal tá foda viver de escrever.

_ É por isso que não gosto de falar as coisa pra senhora, vem logo com quatro pedra da mão. Já expliquei que as duas editoras recusaram minhas ideias para publicar um livro. E a outra cobrou os olhos da cara, nem fodendo que pago aquilo. Ainda mais sendo o meu primeiro livro. Eles é que tão perdendo a chance de ganhar dinheiro comigo.

_ Só me preocupa você ficar esperando que dê certo e não tome um rumo na vida.

_ Mas fazer isso é meu rumo, mãe, a senhora não entende? Não confia no meu talento?

_ Claro que confio, meu filho. Mas você já tá chegando nos trinta e dois e nada deu certo. Acho que tá na hora de procurar um emprego e tentar ser escritor de maneira paralela.

_ DROGA, MÃE, VOCÊ NUNCA ACREDITOU EM MIM. ME ACHA UM INÚTIL QUE TEM MAIS DE TRINTA E AINDA MORA COM A MÃE. VOCÊ SÓ AMA O RAFAEL, SEU FILHO PERFEITO. CASADO. FORMADO. VOCÊ NUNCA ME DEU VALOR.

Merda, a tremedeira tá voltando.

_ Olha seu tom de voz comigo, rapaz. E se acalme, lembra do que seu médico falou?

_ Ah! Vou pro meu quarto.

_ Não vai terminar seu café?

_ Perdi a fome, mãe, perdi a fome.

Onde é que está a droga do meu remédio? E o meu computador? Preciso escrever. Urgente. Pensa-pensa-pensa. Feira. O que posso escrever sobre feira? E seu eu falasse sobre--não. Pensa caralho. Como é que ela pode falar daquele jeito comigo? Ela sabe que tô doente. Pensa. Só por que meu irmão mais novo já saiu de casa há quatro anos não quer dizer que eu seja um fracassado. Feira. Será que sou? Pensa. Espero que essa tremedeira pare logo. Espero me curar dessa porcaria e voltar a encher a cara. Afinal, era isso que eu faria se estivesse sem ideias. Pensa, Luís. O que de legal aconteceu na sua infância naquela maldita feira? Será que tá na hora mesmo d’eu procurar um emprego? E se eu não for essas coisas todas que acho que sou? Não, sou sim. E ainda vou ser o melhor escritor dessa cidade. Pensa. Feira. Isso! Isso! É claro. DONA MALVINA. Como poderia esquecer dela e de sua floresta negra? Aquilo me causa pesadelos até hoje.

Se me lembro bem foi numa terça perto do meu aniversário de dez anos, que a conheci. Naquele dia, eu junto com Kayo, Maicodouglas e Junin (que já tinham feito as pazes), descemos para a feira por volta das sete e quinze, como qualquer outro dia de feira. Tínhamos nossos clientes fixos e vez por outra aparecia gente nova. Eu tinha um trato com João da barraca de coentro, que ele sempre me indicava pros clientes e eu indicava a barraca dele pro pessoal. Foi ele quem me apresentou à Dona Malvina, uma viúva dos peitões que tinha acabado de se mudar de São Gonçalo.

_ Piolho! – sim, eu tinha um apelido – leva as coisa de Dona Malvina até a casa dela. Fica ali na terceira travessa da Henrique Dias, sabe onde é?

_ É perto do mercadinho de Berenice?

_ Mais pra embaixo, duas travessas depois de Primo. – respondeu antes que João pudesse explicar.

_ Ah! Sei onde é.

_ Ótimo! A casa é laranja, número 12.

_ Quem é que tá lá pra receber?

_ Pode chamar por Geralda, é a menina que arruma lá em casa. Por essas horas ela já deve estar lá.

Peguei as sacolas, coloquei no carrinho e fui andando devagar, sem pressa de chegar. Não era muito longe, mas na velocidade que fui levei uns quinze minutos. Tive a maior dificuldade de empurrar as compras pela travessa de areia e cheia de buracos dela. A casa era pequena, laranja e com aspecto de envelhecida. Apertei a cigarra. Nada. Bati palmas. Nada. Chamei pela Berenice. Nada. Passei uns cinco minutos gritando em frente a casa até entender que não havia ninguém lá dentro. Droga. Odiava quando aquilo acontecia. Mas não era a primeira vez. Nessas horas a melhor coisa a fazer era sentar e esperar. Se eu voltasse pra feira era capaz de não encontrá-la. Ela demorou meia hora até aparecer. Ficou surpresa com eu ainda estar lá na frente, esperando-a.

_ Faz muito tempo que você tá esperando?

_ Um pouco. Chamei, chamei e ninguém apareceu.

_ Estranho, a Berenice sempre avisa quando não pode vir. Deve ter acontecido algo. Venha, me ajude a colocar essas coisas pra dentro.

A casa não tinha muitos móveis e muita coisa ainda tava empacotada. Uma sala, uma cozinha com uma mesa e três cadeiras, um banheiro, um quarto.

_ Não repara a bagunça, acabei de me mudar e ainda não tive tempo de arrumar nada.

_ Tudo bem, lá em casa é do mesmo jeito.

Ficamos um tempo em silêncio. Eu, esperando ela me pagar, e ela me olhando sem entender. Sempre fiquei sem graça de cobrar, preferia que tivessem o bom senso e o fizessem sem eu pedir.

_ A senhora pode me arrumar um pouco de água.

_ Desculpe, minha água acabou. Vou pedir que o menino traga já já. Mas eu tenho suco, aceita? Também tenho uns biscoitos aqui.

Eu tava com a maior fome.

_ É suco de quê?

_ Graviola com abacaxi.

Fiz cara de poucos amigos.

_ Hm, quero não. Eu nem tava com tanta sede assim. Mas obrigado.

Ela deu a maior gargalhada.

_ Estou brincando, menino. O suco é de maracujá, meu predileto.

Também era o meu. Ela me serviu com alguns biscoitos cream craker e sentou ao meu lado para conversar.

_ Você é um garotinho muito esperto pra sua idade.

_ Garotinho nada, sou um adolescente.

_ Adolescente?

_ É claro.

_ Quer dizer que já tem namorada?

_ Namorada?! Hmm. É. Não.

_ Achei que um garoto como você deveria ter delas. Se eu fosse mais nova não dispensava um rostinho lindo como o seu.

Eu estava corando. Constrangido. Com medo. Meu coração estava acelerado. Não sei explicar. Ela me olhou e sorriu, passou a mão em meu rosto e disse pra eu não ficar assim. Vermelho. Que eu tivesse calma. Logo percebeu que naquele momento já existia uma elevação em meu calção. Quando a gente é menino, vez ou outra esquecemos de andar de cueca. É foda. Não tinha como esconder. Eu nem entendia direito o que era tesão. Nunca nem tinha beijado uma menina, só pensava em jogar bola e vídeo game. Naquela época acho que nem punheta eu batia. Fiquei tenso. Suando frio. Com vergonha de tudo que tava acontecendo.

_ Eu-eu acho que vou ter que ir embora.

_ Mas já?

_ É que eu-eu tenho outros clientes para pegar. Os meninos vão findar me roubando eles.

_ Vão nada. Fica, eu compro o seu dia de trabalho – falou, tirando uma nota de dez do bolso.

_ É que eu preciso mesmo ir.

_ Tudo bem. Só espero um minuto que vou buscar uma coisa pra te dar. Certo?

Assenti com a cabeça. Por um momento a tremedeira nas pernas quase parou. Finalmente eu ia sair dali e nunca mais voltaria. Era uma situação estranha, aquilo me assustava. Tomei mais um gole do suco, comi mais um biscoito enquanto ela demorava, certamente procurando as chaves ou qualquer outro trocado no quarto. Então, ela voltou e me pegou novamente de surpresa. Fiquei hipnotizado com aquela visão. Ela apareceu na porta completamente nua. Seios enormes com mamilos negros e gigantescos. A mata entre suas pernas me deixaram numa espécie de transe. Nunca tinha visto uma mulher nua ao vivo. Só nas revistas que pegava escondido do meu pai ou quando ia alugar uma fita cacete e ficava observando de canto de olho a sessão proibida. Numa reação espontânea do meu corpo, segurei meu pau. Ela sorriu e fez sinal com o dedo para que eu fosse até ela. Hesitei por alguns instantes mas acabei indo ao seu encontro. Ela me abraçou. Eu podia sentir o suor escorrendo de seu corpo. O cheiro era forte. Mas tudo aquilo era estranhamente bom. Eu estava com medo. Mas não queria mais fugir dali. Primeiro ela tirou minha camisa e pediu que eu deitasse na cama. Eu não falava, apenas seguia o que ela mandava. Ela tirou o meu calção. Minhas pernas tremiam. Ela olhou para o projeto de pau que eu tinha na época e novamente me olhou. Sorriu.

_ Nem pentelho tem mas o pau já tá desse tamanho? Você tem futuro, meu menino. Tem futuro.

Ela passou a língua na base até chegar à cabeça e então encaixou aquela boca enorme em mim. Era quente. Lembro de sentir um pouco de cócegas, que logo foi substituído por prazer. Não demorou muito. Pouco segundos após ser chupado pela primeira vez, uma viúva gorda rebolava em cima de mim. Era estranho. E eu já estava agoniado. Preferia que ela tivesse continuado chupando. Me incomodava o fato dela ficar pulando, se esfregando em mim. Só pensava em ir embora. Não lembro de ter gozado, acho que nem porra eu produzia na época. Tudo isso deve ter durado uns cinco minutos. Foi quando finalmente ela saiu de cima e caminhou para fora do quarto sem olhar para trás. Entrou no banheiro. Era minha chance. Vesti rapidamente meu calção e corri. Na área percebi que tinha esquecido a camiseta. Pensei “foda-se”. A grade estava com o cadeado aberto. Pronto, eu estava do lado de fora da casa. Mas, e meu carrinho de mão? Puta que pariu, não sei explicar a frustração que foi perder meu carrinho de mão daquela maneira. Mas não importava mais, eu precisava voltar correndo antes que ela fosse atrás de mim.

Passei quase um mês sem botar o pé na feira. Mas logo voltei. Esbarrei na Dona Malvina uma outra vez. Minha reação foi ficar estático por alguns segundos e depois correr como se o mundo tivesse acabando. Eu nunca contei essa história pros meninos. Nem para ninguém. Mas, sabe de uma coisa, é uma boa história. Daria até pra escrever um livro inteiro sobre minha primeira experiência sexual. Ou seja lá o que aquilo foi. Mas será que isso vende? Será que vale a pena mostrar isso para algum editor? Não sei. Me sinto aliviado de ter contado isso para alguém. Nem que tenha sido para um papel. Ou melhor, tela de computador. Olha, até minha crise nervosa parou. Escrever sempre me alivia e ajuda. Até hoje não sei que descrever direito o sentimento que nutro pela Dona Malvina. Não diria raiva. Ou medo. Mas aquilo me marcou muito. Enfim, melhor eu terminar essa história por aqui e deixá-la guardada no fundo de uma dessas pastas no pc nomeada de aaa e que nunca voltarei a olhar.

Ouvi dizer por ai que a velha morreu. Melhor assim. Melhor eu ficar na minha e deixar que toda essa história morra com ela e sua floresta negra, à sete palmos do chão. Porra, cadê meus remédios? Necessito de uma cerveja.

_ Ôh, Luís, preciso de sua ajuda.

_ Não enche o saco, mãe, tô escrevendo.

Gonzaga Neto
Enviado por Gonzaga Neto em 06/11/2015
Reeditado em 03/08/2016
Código do texto: T5440217
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