LAGOSTAS COZIDAS

Baboseira.

Cada palavra que escorregava da boca de Maria era desperdício de silêncio . Maria não era má , era agradável estar do seu lado , até que se punha a contar historias que ela julgava interessante . Todo mundo ( ou a maior parte ) das pessoas julga ter algo bom para dizer a respeito da vida e formam teorias sobre Deus e a criação . Fato é que eu não estava nem ai para isso . Não sou a porra de uma testemunha de jeová que tem a missão de repassar as palavras escritas por alguém num caderno antigo ou um padre disposto a ouvir confissões do lado de dentro do portão de casa . Só que nenhum cretino pensa nisso , e eu finjo estar interessado para não passar a imagem de um cretino indelicado . Não que eu me importe , mas a maioria sim . Então isso faz de mim uma marionete que joga o jogo ? Estou refletindo sobre isso enquanto Maria me mostra sua tatuagem , sua nova tatuagem com o nome do seu mais recente ex namorado . Ela disse que quando vai trabalhar esconde a pintura com base de maquiagem . Envergonhada sobe a manga do moletom GAP vermelho antes que o garçom volte com a comida . Ela come um prato de salada com muito molho para salada . Como qualquer outra mulher vive incomodada com o peso , mas se esquece disso quando chega a sobremesa . Bolo com sorvete e calda de chocolate . Seus cabelos castanho escuro são brilhosos , as sardinhas no rosto me entretêm , fico tentando contar quantas são enquanto ela se concentra no bolo com sorvete . Estou tão focado na contagem que tomo um susto quando ela diz :

O que foi ? Meu rosto está sujo ?

Pego um guardanapo e passo ele no lado da sua boca , como que para tirar um pouco de sorvete ou calda .

Ela sorri e agradece .

Gosto de conversar com você , ela fala , pegando um pouco do sorvete derretido para chupar que nem sopa na colher . Você ouve o que a gente tem pra dizer . Diferente desse babaca – ela aponta para a tatuagem com o nome do recém-ex .

São duas da tarde , já estou atrasado para o trabalho , só que quem se importa ? Eu que não . Prefiro ficar aqui ouvindo essa lenga-lenga sentimental a ver a cara assassina do meu chefe isolado em seu mundo sádico .

O restaurante esta ficando vazio , só resta Maria , eu e um casalzinho que come churros de mãos dadas . A cena é altamente doce e diabética .

Você acredita que semana passada – começa ela baixinho - vi esse desgraçado aos beijos com uma fulana de tal , quando ele me telefonou perguntei quem ela era e ele teve a cara de pau de me dizer que era só uma prima e que eu entendi errado ….

Ela continua , e diz que perdoar foi uma tremenda furada , porque ante ontem o pegou com a mesma fulana , e dessa vez , ele estava apalpando sua coxa , e segundo ela , nenhum primo apalpa as coxas da prima daquele jeito .

Agora – continua ela – me sinto muito mal , não por ter lhe dado um basta , mas porque me culpo por pensar que não lhe dei chance de se explicar .

E juro por Deus que vi seus olhos se umedecerem e uma lágrima solitária escorreu por seu rosto depois de uma piscada longa . Parecia cena de filme . Senti vontade de aplaudir .

E agora tem a tatuagem , eu falo , num pensamento alto , ela me olha e se retrai como um cachorrinho que acabou de fazer merda . Sugiro sairmos para fumar . Depois dessa bola fora , me disponho para pagar a conta .

Depois de caminhar em silêncio por algum tempo , Maria pergunta se eu não tenho que ir trabalhar . E quem não precisa ? Respondo . Algumas pessoas se sentem mal quando faltam no trabalho sem avisar , mas quando a demissão vem , é igualmente ruim , só que não para o patrão , sim para o funcionário que sofreu quando não pode ir trabalhar por conta do velório da mãe . Maria me conta que leu no jornal sobre uma mãe que deixou o filho num banco de praça , seu filho recém-nascido , porque pensou que a patroa a demitiria se descobrisse que ela tinha parido uma criança . Uma grande corrosão do sistema emocional. Ah , sim , o mundo está fodido . Ela diz . Não é o mundo , falo , são as pessoas .

Esperamos no ponto pelo próximo ônibus . Tem um velho sentado envolto em trapos com barba e cabelos longos e sujos . Nos seus pés um cão de pelo caramelo funga quando um mosquito pousa no seu nariz preto .

Vem da natureza da selvageria adquirida pelo povo das ruas criar o habito de pedir . Logo chegamos o homem vem com um papo sobre as calças rasgadas nos joelhos de Maria .

Em você elas ficaram bem , já em mim , de uma olhada ( ele se levanta e dá uma volta em torno de sim mesmo ) pareço um mendigo . Então a ideia é sempre estabelecer algum laço , tal qual que te faça se sentir mal em negar algumas moedinhas ou nesse caso , um cigarro . Lhe entrego um , então o homem tateia os bolsos a procura de fogo . Maria tira um isqueiro de sua bolsa . Depois de acender o cigarro , ele a olha , agradece com a boca cheia de fumaça e pergunta se não teria como ele ficar com o acendedor . Ta certo que para se chegar em algum lugar é preciso ser ousado e cara de pau , só que não quando a parada é sobre as custas dos outros . Não demora muito , seu cigarro ainda está na metade, começa a expor sua situação . Sorrateiramente enfia o isqueiro como se não estivéssemos vendo , no bolso .

Não como desde o café da manha de ontem . Diz ele . E não estou julgando , mas tem uma garrafa de uísque vagabundo debaixo do banco do ponto que esta pela metade . Ele me pega olhando para ela . Vai um trago ai ? Oferece , se abaixando , o cão acorda num pulo incomodado com a movimentação . Se afasta um pouco e se estica todo .

Bebe um gole , cara . Pode não parecer grande coisa , mas o sabor é bom .

Penso em todas as possibilidades possíveis de líquidos que podem estar dentro daquela garrafa com o rotulo todo surrado . E depois do homem maltrapilho dar um bom trago , aceito , e sinto sabor de fumo no gargalo , ele desce rasgando , Maria me olha de olhos arregalados e depois de recuperar o folego lhe estico a garrafa . Encabulada segura o litro com certo nojo . Parece que está com um feto de cachorro entre as mãos . Beba , eu digo . Não é tão ruim quanto parece . Na verdade , é quase bom , basta ignorar a dor e você até consegue gostar um pouco .

O maltrapilho diz que pode passar dias sem comer enquanto tiver uma garrafa daquilo .

E o que tem aqui dentro ? Pergunta ela . Um pouco de tudo . Compro duma destilaria pessoal que um amigo tem . Isso é tudo o que sobra no fundo dos tonéis de alumínio . As vezes precisamos raspar o fundo , dai abrimos a torneirinha e enchemos a garrafa . Maria fecha os olhos e beija o gargalo , deixa escorrer um pouco do líquido para dentro da boca , na hora ela segura a ânsia . Com algum esforço engole , posso ver a bebida fazendo o caminho do estômago rasgando como brasa .

Isso é horrível ! Diz ela , se curvando para vomitar .

O maltrapilho ri alto com as mãos nos joelhos . O cão se afasta indignado e se deita no sol .

O sorriso do vagabundo é como de um bebe recém-nascido banguela.

Nos sentamos , Maria , eu e o maltrapilho , nessa ordem , da esquerda para a direita . Maria era boa pessoa , mas um pouco assustada demais com gente mal vestida , vagabundos e afins . O homem me filou mais outro cigarro , e eu lhe tomei outros dois tragos . A bebida realmente era forte , subiu rápido , e em poucos minutos ele e eu estávamos debatendo sobre politica , assim como qualquer bêbado do mundo . Quando fui para o próximo gole Maria me cutucou , eu lhe olhei eme deparei com seu semblante carrancudo . Disse em voz baixa achando que meu mais novo amigo não iria ouvir : não tem vergonha que te vejam bêbado num ponto de ônibus conversando com um vagabundo ?

Querendo ou não , querida , lhe falei , estamos todos no mesmo barco .Só que eu viajo na classe econômica e ele é o tipo que coloca carvão na fornalha . Maria revirou os olhos castanhos . Estava calor , e o maltrapilho , que vamos lá , vamos dar um nome a ele , se chamava Josias , perguntou se a garota estava doente por estar vestindo a blusa naquele dia .

Não é de sua conta , ouço sair de seus lábios .

A condução está atrasada . Nada de novo .

Ao longo da avenida lojas vazias , alguns galpões fechados , carros param no farol , mães caminham com seus filhos apressadas , homens e mulheres vestidos de uniforme laranja varrem as calçadas . Num mundo perfeito ,todos estariam fazendo que gostam .

Enquanto isso , esperamos pelo ônibus .

11/11/2015

15h33m

Cleber Inacio
Enviado por Cleber Inacio em 11/11/2015
Código do texto: T5445489
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