Uma febre, um malandro e um vendedor de pastilhas

Certo amores te deixam de cama. E foi isso que aconteceu comigo ontem, melhor dizendo, hoje cedo. Mas não se preocupe, isso não é uma história de amor. Longe disso. Ultimamente não tenho tido saco para escrever coisas do melosas, e quando tenho, sai uma sempre uma porcaria. Mas para contar os fatos de hoje cedo vocês precisam entender que fiquei de cama, com febre, garganta inflamada e tudo mais. Caso contrário nem teria tempo ou paciência de escrever isto aqui.

Confesso que ela me alertou que não tava nada legal, mas quem eu quero enganar? Qual cidadão apaixonado do mundo deixaria de dar uns beijos por causa de uma gripezinha? Pois é, eu não sou esse cara.

Minha febre começou por volta das dezoito horas. A mesa repleta de jobs com prazo para ontem e um dor de cabeça que não me deixava concentrar naquele bendito roteiro. Tentei levantar para ir ao banheiro, mas meu corpo doeu todo. Cada músculo gritava a um novo passo dado. Fechei a porta e me olhei no espelho. Que olheiras, cara, estás precisando dormir - disse para mim mesmo. Liguei a torneira e fiquei observando a água escorrer por alguns segundos. Lavei meu rosto e retornei para a sala da criação. Esse ar tá no dezoito? Pô, tá o maior frio. Peguei o controle mas ele se encontrava em vinte e dois graus. É, melhor ir pra casa mesmo – comentei com o diretor de criação.

Desci a ladeira esquisita da Ribeira, em direção à parada do Teatro Alberto Maranhão, ali sempre tem mais opções de ônibus para a Zona Norte. Caminhei devagarzinho, curtindo o som do meu fone de ouvido que, por sinal, quebrou um lado. Lembrar de comprar outro amanhã.

Se eu conseguir levantar, é claro.

O caminho que costumo fazer em cinco-dez minutos, fiz em quase vinte. Quem me conhece sabe que geralmente sou mais dramático que o habitual, mas o corpo tava doendo pra valer. Horário de pico raramente passa ônibus vazio, e naquele estado não tinha a mínima condição de ficar em pé. Ia findar desmaiando ou vomitando em alguém. Vinte minutos de espera quando passou o 13A – Redinha, vazio. Não contei conversa, subi e me sentei lá atrás. Assim que chegasse no Atacadão pegava outro que descesse a Av. Paulistana.

Coloquei o celular no bolso esquerdo, de modo que ninguém poderia puxá-lo quando eu cochilasse, abracei minha bolsa e encostei a cabeça na janela, incomodado pelas luzes acessas do ônibus que me doíam a vista. Quem conhece as ruas de Natal sabe que não é nada fácil dirigir por aqui, ruas sempre esburacadas e nada de trânsito calmo. Na altura do Alecrim eu acordei no susto, batendo minha cabeça na janela, depois que um buraco quase comeu o pneu do busão. A porta de trás abriu e, rapidamente, um sujeito, aquele típico malandro, que por essas bandas é conhecido como pinta, entrou por trás antes das portas fecharem. O senso comum e o gigantesco preconceito da minha parte, é claro, logo bateram em minha porta e fiquei em estado de alerta diante àquela figura estereotipada. Ele vestia uma bermuda cinza de veludo, junto a uma camiseta laranja da Cyclone, um cordão de prata com uma cruz gigantesca e os tradicionais boné de aba reta e sandálias da marca Kenner. Sentou na minha frente sem que o motorista notasse sua presença e ficou olhando para fora da janela, com a cabeça para o lado de fora. Gritou alguma coisa para alguém da rua, que não entendi bem o que era, e voltou a observar as pessoas da parada. Logo, deixei-me tomar novamente pelo sono e cai mais uma vez nos braços do Morfeu, como dizia painho na minha infância.

Não obstante, fui acordado mais uma vez. Agora era pelo falar alto de um cidadão que se encontrava ao meu lado. O vendedor de pastilhas.

_ DEUS É MARAVILHOSO, MEU FILHO. DEUS É MARAVILHOSO. TÁ VENDO ISSO AQUI? – apontava para um saco de pães – ANTIGAMENTE EU PEGAVA CINCO CONTO E GASTAVA TODINHO FUMANDO DROGA.

_ Amém – comentou o pinta.

_ EU JÁ MATEI, ROUBEI E PASSEI CINCO ANOS EM ALCAÇUS, MAS JESUS ME CUROU E AGORA ESTOU AQUI GLORIFICANDO E MOSTRANDO QUE É POSSÍVEL O MILAGRE.

Àquela altura o papo entre os dois tava na maior viagem, e decidi discretamente, desligar a música que ouvia para prestar atenção na conversa alheia.

_ VEJA AQUI – disse o vendedor de pastilhas, tirando caixas de remédio da bolsa – EU ERA SOROPOSITIVO, MAS ONTEM FUI EM UMA PREGAÇÃO DE UM MINISTRO QUE JÁ PREGOU A PALAVRA EM MAIS DE VINTE E DOIS PAÍSES E ELE ME CUROU. EU NÃO PRECISO MAIS DESSES REMÉDIOS, DEUS ME CUROU.

_ Amém – repetiu o sujeito à minha frente – Jesus é maravilhoso mesmo varão.

_ E QUEM QUIZER XALÁBAXALÁ BALAXÚBAXALÁ É O SENHOR QUE É FOGO NO XABALARAMXÚ DOS CÉUS.

_ Se ligue, boy, é o espírito santo agindo sobre ele – disse-me o pintoso, ao perceber que eu estava prestando atenção no que conversavam. – sabe, varão - disse para o vendedor – aconteceu algo comigo também. De rocha mesmo. Há três meses, quando fui na Assembréia lá perto de casa. Antes de ir pro culto eu conversava com Deus, sabe. Isso mesmo, conversava. Pedia para ele me dar umas benção. E não é que naquele dia o culto foi direcionado pra mim? Esse Deus é poderoso mesmo, de rocha?!

_ ALELÚIA XABALAXAM! – gritou e virou-se pra mim – VOCÊ TEME A DEUS, JOVENS?

Agora imagina minha situação: com uma puta febre, cheio de dor no corpo, tentando cochilar e ainda aguentando a pregação. Sei que se falasse minha real opinião ia ser julgado e aquilo duraria mais tempo que o necessário. Então, para encurtar conversa apenas respondi.

_ Amém. Amém.

Ficaram conversando sobre uns cantores logo começaram um louvor. Putz, era só o que me faltava. Mas, por incrível que pareça, acabei pegando no sono e dormindo tranquilamente. Ainda bem que não consegui ouvir o resto daquele conversa, era capaz d'eu ter um tipo de convulsão ou coisa do tipo.

Acordei e percebi que havia babado. Do lado de fora, um carro fúnebre ultrapassava na faixa da esquerda. Quando me dei conta já estava quase chegando ao ponto final. Droga, perdi a parada, fui catequizado e, de sobra, ainda tive que pegar mais dois ônibus para chegar em casa. Hoje estava só em casa e nem drama dava pra fazer. Tomei um dipirona, preparei minha janta, entrei num banho e me joguei na cama para escrever este ocorrido.

Meu corpo ainda dói, mas já estou começando a sentir calor. Um bom sinal, eu acho. Melhor parar por aqui e ir dormir, afinal, amanhã o dia é longo e aquele roteiro que não terminei por causa do beijo, me aguarda.