PUGLIA SÓ

PUGLIA, SÓ

Um conto de rua...

por Isabel Werlang

Um dia alguém conseguiu arrancar-lhe meia dúzia de frases pronunciadas entre dentes.

Ela não queria saber de conversa. Mudava constantemente os lugares que escolhia para passar os dias e as noites. Quando achava que já tinha visto tais e tais pessoas, não pensava duas vezes. Juntava suas coisinhas e seguia em busca do anonimato.

Que segredos escondia aquela mulher, tão arredia a tudo e a todos. Por que fugia à menor ameaça de descoberta de sua identidade, se é que tinha uma. Era isso que Raul queria descobrir.

Desde que a vira pela primeira vez, a imagem daquele rosto abatido e sombrio não o abandonou. Raul cursava o último ano de jornalismo, por isso prestava muita atenção a tudo e a todos a sua volta. Estava sempre à caça de algum acontecimento que lhe rendesse uma boa matéria. E acima de tudo, tentava uma aproximação com a mulher misteriosa....peregrina das ruas, das praças, das marquises. Uma tarefa quase impossível. Ele tentava se aproximar e ela se esgueirava, ligeira, e sumia na primeira esquina.

Um dia aconteceu. Foi puro acaso. Uma chuva torrencial caiu de repente. Raul correu para debaixo da marquise mais próxima para se proteger. E ali também estava ela, a tal mulher misteriosa. E os dois ficaram cara a cara. O jovem jornalista não poderia perder, talvez a última, senão a única, oportunidade de ter uma conversa com ela. Após algumas considerações resmungadas sobre a chuva, dirigiu-se à peregrina com muito tato:

--Faz muito tempo que eu conheço você e nem sei o seu nome! Qual é mesmo o seu nome?

A chuva estava ainda mais forte. Fazia muito barulho.

Ela fez que não entendeu.

Ele se aproximou mais.

--Como é que você se chama?

Olhando para seus próprios pés, ela sussura:

--Puglia.

--Puglia? Puglia de quê? __ insiste ele.

--Puglia de nada seu moço... só Puglia...

--Como assim, só Puglia?

--Não interessa seu moço.

Só não saiu correndo porque a chuva estava muito forte mesmo.

--Mas você deve ter uma família... um marido... tem filhos?

--Não moço. Não tem ninguém não.

--Mas como...com quem você vive?

--Só eu... sozinha.

Em nenhum momento levantou os olhos para ver com quem falava. Talvez fosse o medo de deixar escapar pelas janelas da alma os sentimentos há tanto tempo presos.

A chuva foi parando. Puglia, surpreendentemente, não saiu apressada como sempre. Também não fitou seu interlocutor. E de repente veio a surpresa

Foram poucas palavras... a mão secando disfarçadamente lágrimas... e o moço entendeu tudo. Entendeu que não tinha o direito de vasculhar sentimentos só para satisfazer a sua curiosidade, o seu anseio de se dar bem na profissão.

Encabulado, Raul retomou seu caminho. Agora pensava nas palavras de Puglia:

“Moço, meus pés são da terra, minha mente, do ar. Meu corpo em chamas, procura o mar... Por isso, moço, até nunca mais.”

Idw – 11/02/2015

Isabel Werlang
Enviado por Isabel Werlang em 24/11/2015
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