Buchada de Bode em París

O badalado chef Jean Claude infernizava a vida dos cozinheiros e ajudantes do famoso restaurante parisiense Le Grand Taureau Bleu. 1 Estava irritado porque nunca em sua longa carreira fora obrigado a sair da adorada rotina onde era aclamado como o maior Chef da alta cozinha francesa. Dava ordens desconcertantes aos seus subordinados que nunca o tinham visto naquela situação. Os lábios carnudos do mestre-cuca estavam trêmulos e notava-se que algumas gotas de suor formavam gotículas em sua testa lisa Mas não era pelo calor natural de uma cozinha, de vez que aquela era climatizada por potentes exaustores e condicionadores de ar igualmente poderosos, que mantinham o ambiente numa temperatura agradável. Estava com os nervos à flor da pele por ter passado a noite toda pesquisando em sua ampla biblioteca de culinária, alguma referência a aquele prato de nome estranho. Mesmo sendo um poliglota que falava cinco idiomas, português não era um deles. E ainda que constassem em seus livros muitas receitas do Brasil e do país lusitano –fórmulas que não desprezava- aquela não existia em nenhum.

__Merde. __Chèvre du ventres, où avez vous vu?2 __Resmungava o francês indignado.

Já era a quinta tentativa fracassada de fazer uma autêntica buchada de bode cearense que satisfizesse o paladar de seu patrão e dono do afamado restaurante. O homem estava obcecado por aquele prato e queria introduzir a iguaria em seu estabelecimento como uma alternativa revolucionária à cuisine française que pouco mudara em décadas de pratos tradicionais.

Tudo começou quando o empresário francês Pierre Lafond fazia turismo pelas costas brasileiras à procura de comidas típicas que pudessem ser adaptadas à culinária francesa, estagnada pelos lugares comuns em matéria de gastronomia. Esteve na Bahia onde provou vatapá, acarajé e outros pratos tradicionais da região, anotou as receitas. E apesar de gostar muito da comida, sentia que não era bem aquilo que estava procurando. Foi quando o iate que alugara sofreu uma pane, e ele e a tripulação ficaram à deriva perto de uma praia quase deserta do Ceará. As tentativas de reativar o motor acabaram descarregando a bateria e assim ficaram em uma posição crítica; sem rádio e num local onde os celulares estavam fora da área de cobertura. Depois de longas horas vagando sobre as ondas ao Deus dará, a embarcação foi avistada por alguns pescadores experientes que logo perceberam a situação daquele barco que ia da esquerda para a direita e era jogado para cima e para baixo como uma gangorra descontrolada. Quando finalmente abordaram o iate, encontraram os três tripulantes e o milionário francês num estado lastimável. Depois de muito esforço conseguiram levar os quatro homens para a jangada e rumaram para a praia. Algumas horas de descanso foram suficientes para que os tripulantes recobrassem as forças e fossem atrás de um rádio ou telefone para pedir socorro.

Apenas Pierre continuava na mesma condição de debilidade. Sua pele branca exibia agora um tom amarelado, enquanto os lábios antes carmim tinham perdido toda a cor. Na falta de hospitais ou postos de saúde nas imediações, Francisco, um dos pescadores, levou o francês para sua casa, pois não seria correto deixar o homem na praia, e os outros marinheiros nada podiam fazer de imediato. Sua esposa, Maria da Conceição, era filha de pescadores e já tinha visto aquele tipo de ocorrência muitas vezes durante seus quarenta e dois anos de vida, e sabia o que fazer. Depois de acalmar o quase náufrago, fez-lhe massagens com óleo de peixe nas pernas e no dorso, sob o olhar vigilante de Francisco. Não por ciúmes, diria ele mais tarde quando contava a história na única barraca do lugar onde podia se tomar uma cachaça. Não tinha ciúmes porque o francês parecia um saco de farinha pela metade, um bregueço. 3 Além disso, Conceição há muito tinha perdido o viço e já não era tão apetrechada como na época que a conheceu. Mas ficar por perto era garantia de que nenhum vizinho iria acusa-lo de andar por ai com chapéu de touro.

Cícero Luiz Francisco se orgulhava de seu nome. Como todo cearense que se preza, ele tinha nome de santo, melhor ainda: tinha um nome triplamente santo. Mas a vida dura de pescador já havia tirado o ânimo de Chico, como preferia ser chamado. Adorava o santo protetor dos animais, o que não impediu que fosse detido várias vezes pela pesca ilegal e predatória da lagosta e de outros frutos do mar em estações do ano, quando essa atividade era proibida e ele tinha que sustentar a si, à mulher e os seis filhos com um pequeno benefício concedido pelo governo. Com todos esses problemas, Francisco tinha que se desdobrar para manter a família comendo. Fazia quase três anos que ele vinha investindo em um novo projeto: criação de bodes.

O negócio prosperava rapidamente, pois a demanda por buchada de bode nos pontos turísticos do Ceará aumentava ano após ano. E como as crias das cabras nem sempre eram futuros bodes, ele não sentia remorsos em vender buchos de cabra como se fossem do animal macho, uma vez que os turistas jamais notariam a diferença. Só um autêntico cearense poderia distinguir uma coisa da outra. Na época que levou o francês para sua casa, acabara de abater dois bodes e algumas cabras encomendadas, e assim tinha fartura em casa. Conceição fez um caldo daquela carne forte para o hóspede, temperada com pimenta-de-cheiro, pimentão e tomate. Em pouco tempo Pierre se restabeleceu e ficou maravilhado por ter sido acolhido naquela casa simples e tratado com tanta hospitalidade, além de ficar encantado com o sabor do caldo de cabra.

Três dias depois os marinheiros retornaram e Pierre ficou sabendo que o barco fora consertado e eles poderiam partir a qualquer momento. Mas Pierre, apesar de milionário era um velho afável e honesto. O caos durante a pane do barco e as horas de infortúnio que pareceram dias infindáveis de sofrimento, fê-lo sentir que tinha uma dívida impagável com o pescador. Fora avisado que deveria andar sempre com dinheiro vivo, pois naquelas bandas era difícil encontrar lugares onde aceitavam cartão de crédito ou cheques. E assim o francês carregava dois volumosos maços de notas da moeda brasileira na bagagem que ficara no iate e que fora trazida mais tarde. Chico não pôde resistir à tentação de dar uma espiada na mala do moribundo e viu que ali a coisa corria frouxa4,, mas apesar da pobreza e da vida dura, ele não era um verminoso5 por dinheiro. Colocou os maços de cédulas de volta no lugar e não mexeu mais nos pertences do hóspede.

Pierre, em agradecimento pela hospitalidade, deu todo o dinheiro que trazia consigo a Francisco. Chico nunca tinha visto tanta grana na vida e resolveu retribuir ao francês com alguma coisa que lhe fosse cara. Assim, sacrificou mais um bode e junto com Maria da Conceição fizeram uma autêntica buchada à moda do Ceará. O francês olhou com certo receio para o prato de aparência estranha e cheiro peculiar. Mas logo nas primeiras garfadas sentiu que estava diante de algo raro. Comia com gosto. Mastigava e revirava os olhos de contentamento. Depois de se fartar, pediu a receita. Iria revolucionar a cozinha de seu país.

Dias depois, na França, Pierre passou a “fórmula” já traduzida a Jean Claude, que torceu o nariz para os ingredientes, mas era apenas um empregado e não havia alternativa, tinha que seguir as ordens de Pierre. Mesmo se considerando um Chef clássico, ele não mediu esforços para cumprir a missão que acabou se tornando um desafio. Mas todas as suas tentativas fracassaram: o prato não era o mesmo. Por mais que o Chef arrancasse os poucos fios de cabelo que ainda tinha, tudo era inútil. Embora a aparência fosse a mesma, o sabor era outro. Só depois de muito discutir chegaram à conclusão que o problema era com os bodes do país. Animais criados em um clima ameno com ração selecionada, e isso interferia no gosto.

Então Pierre, que resolvera manter a amizade com seu salvador, escreveu uma longa carta para Francisco, enviando-lhe mais dinheiro e pedindo que despachasse um genuíno bode brasileiro.

Chico tinha dois bodes procriadores: Fabrício e Temístocles. Fabrício já era um bode ancião e muito dócil. Não estava mais interessado em reprodução caprina. Mastigava seu capim tranquilamente e nem ligava para as cabras que desfilavam à sua frente e ficavam extremamente ofendidas pelo desdém do bode velho, que fingia não ver. E então, ele foi enviado ao país europeu.

Logo que chegou o caprino brasileiro causou frenesi no pasto. Os bodes franceses olhavam com despeito para Fabrício e se matavam de rir fazendo piadas. Ele era grosseiro e não tinha nenhum charme. O bode brasileiro fingia que não era com ele e permanecia confinado em um canteiro, pois se recusava a comer aquela ração; preferia a grama abundante do seu restrito e solitário cercadinho. Mas a grama daquele pequeno espaço não era eterna e o francês viu que o bode não demoraria muito a morrer de fome. Pierre, que era também fazendeiro e um grande humanista, relutava em sacrificar o cabrito, pois nunca tinha visto tanta doçura num olhar. E assim, mandou que ele fosse colocado em um lugar onde houvesse mais vegetação, junto com as fêmeas. Foi uma gozação geral. Os bodes gauleses diziam entre si, que ele era uma beata velha e barbuda. Mas quando foi solto no pasto das cabras, Fabrício se revelou. Ao sentir o cheiro perfumado das cabritas do outro continente, perdeu o juízo. Renasceu. Deu uma descendência de bodes que contentou o dono do restaurante, enquanto Jean Claude exclamava o tempo todo extasiado: Dieu merci! Dieu merci!6

Notas:

1-O Grande Touro Azul

2-Barriga de bode, onde já se viu.

3-Coisa velha

4-Tinha abundância

5-Ganancioso

6-Graças a Deus

AMAURI CHICARELLI
Enviado por AMAURI CHICARELLI em 30/11/2015
Código do texto: T5465850
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2015. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.