Amnésia

Eu ficava pensando cá com meus botões como seria se ela se lembrasse de tudo. Felizmente, o tudo e o para sempre se opuseram em sua vida e por isso, ter caído no Lete era a proteção que ela tanta precisava. Ela não queria dizer adeus aos seus fantasmas, mas a vida arranjou um jeito de escondê-los. Ontem fui visitá-la novamente e esperava que ela estivesse mais calma porque na semana passada ela parecia irritada como a menina de antes. Levei o seu doce preferido e um casaco, afinal, tem feito muito frio ultimamente. Cheguei cedo ao hospital. Não havia muita gente lá. Então, peguei o elevador e fui direto para o quarto dela. Ela abriu um grande sorriso ao me ver. Estava amistosa como nunca. Conversamos um pouco; falamos de tantas coisas… Eu tentei, como sempre, não tocar em assuntos do passado, mas ela insistia num ponto; naquele ponto. Por mais que eu já tentasse convencê-la de que aquilo não havia acontecido, ela teimava em falar sobre o assunto. Em sua mente, névoas de proteção. E em sua vida, apenas eu, cercando-a com o meu amor. Às vezes eu chegava a invejá-la por estar daquela forma. O passado também não me era bem quisto, até porque ele era composto de um amontoado de sofrimentos. Caberia a mim mudar a vida dela dali pra frente, pois estava indefesa; sem memória remota. Tinha apenas a mim; o filho de quem tanto gostava. E, por incrível que pareça, eu não havia sido esquecido. Ela se lembrou da primeira vez que abriu os olhos depois do acidente. Lá estava eu, olhando pra ela e pedindo a Deus que a protegesse. Ela se lembrou dos nossos primeiros momentos, quando tudo eram cartas embaralhadas numa mesa nua. Fiquei com medo que mais coisas viessem à tona, então, resolvi contar-lhe os meus planos. Ela ficou feliz ao saber que iríamos nos mudar, mesmo sem saber os motivos. Algo dentro dela sempre quis isso, apesar de sua superficial negação. No meio da conversa, eu percebi que seu olhar estava diferente. Havia um traço (leve) de tristeza, como se ali morasse todo aquele passado. Notei também que apesar do sorriso, ela estava com olheiras, como se tivesse chorado a noite toda. Não lhe quis perguntar os motivos daquilo, mas, sempre que eu falava em Deus, ela suspirava fundo, sendo cada suspiro uma prece velada de proteção. Faltava pouco para o fim da visita, quando notei uma foto escondida debaixo de seu travesseiro. Fingi não ter visto coisa alguma para não alarmá-la e percebi que ela se havia lembrado de tudo. Quase não pude conter as emoções, então saí do quarto rapidamente. Enquanto eu chorava no corredor, eu pensava em como encará-la diante da verdade. Como eu iria conversar com ela sobre aquele passado? Como ela poderia ser tão forte de se lembrar de tudo aquilo e aguentar o tranco? Olhei no relógio e vi que ainda faltavam alguns minutos para o fim do horário de visita, então voltei para o quarto. Nós nos olhamos por algum tempo. Eu me aproximei e ela me deu o abraço mais gostoso de todos, como se me abençoasse. Ela me contou que havia recuperado a memória há três dias e que se lembrou de tudo através daquela foto que guardara antes de fugirmos daquele local. Assim que a visita terminou, eu fui saindo devagar e ela sorriu docemente, sentindo-se segura e em paz. Aí, ela fez um gesto de agradecimento, que eu retribuí, obviamente.

Tom Cafeh
Enviado por Tom Cafeh em 17/12/2015
Reeditado em 02/11/2016
Código do texto: T5483569
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