Fuga

O corpo demonstrava as marcas de uma mente insana. Drogava-se dia e noite, com poucas e pequenas pausas, e alguns momentos nos quais se cortava com um pequeno canivete azul, comprado por ele numa viagem que fizera enquanto ainda tinha alguma noção de quem era.

Seu comportamento autodestrutivo não prejudicava só a ele, mas também a todos ao seu redor. Os pais já haviam desistido após inúmeras, sucessivas e inúteis vezes tentarem ajudá-lo; a idade para eles chegara, já não tinham mais vitalidade para retirar o filho daquele trágico rumo que tomara. Os amigos, bem, esses não mais existiam em sua vida. Noutrora fora popular, rodeado por pessoas que se mostravam prestativas e amáveis, mas que, de uma hora pra outra, simplesmente sumiram do mapa. Era de se esperar, devido à condição em que se encontrava. O restante da família era só julgamentos: “Olha o estado desse marginal”, “na minha casa não vai entrar”, “isso é falta de surra na infância”.

Ninguém compreendia o que se passava dentro dele. Ninguém podia sentir a solidão e o vazio que o assolavam. Ninguém podia ser ele.

É verdade que fora criado aos exagerados mimos e todos os desejos atendidos, mas isso nunca fora o suficiente. Algo nunca havia sido preenchido dentro de si. Um certo buraco por falta de sentimentos se formou dentro daquele rapaz.

Demonstrou desde cedo seu gênio difícil, tão diferentes dos genitores, parecia ter sido trocado na maternidade, é o que diziam. Em seu interior, ele sabia, sentia que não era normal. A melancolia o acompanhava inevitavelmente aonde quer que fosse, uma revolta sem causa nascia em seu interior e ele perdia o controle... Aos 21 anos começou a usar drogas como forma de se desvencilhar do monstro que habitava dentro dele. Monstro este que estava prestes a ser acordado.

Em uma de suas crises de abstinência das drogas, roubou de dentro de sua casa algo de valor (isto já não era novidade). Desta vez, o objeto surrupiado foi uma das poucas joias de sua mãe, um anel de prata cravejado com uma linda esmeralda redonda, que por algum motivo estava fora do local em que costumava ser guardado. Nauê viu a oportunidade enquanto passava pela porta do quarto de seus pais, sabia que ali encontraria a solução para sua fissura. Fora bem-sucedido.

Com o objeto em mãos, saiu rapidamente de casa, praticamente correndo, e foi diretamente ao local no qual costumava comprar as drogas que usava. Sua aparência era deplorável. Além das roupas sujas, que já não trocava há 4 dias, e do corpo quase que inteiro cortado, estava magro, apresentava olheiras profundas, pupilas dilatadas e o septo nasal perfurado pelo uso prologando de cocaína, seu estimulante favorito.

Chegando a uma esquina, logo avistou Pituca, um garoto de 17 anos que vendia as drogas naquele ponto. Nauê se aproximou meio desorientado e foi entregando o anel.

- Quero pino.

- Essa parada é verdadeira playboy?

- É... é... passa logo o pó.

- Com esse anelzinho só vai dar pra cinco.

- Que seja, me dá – sua abstinência era tão absurda que nem se importava com o valor do anel, apenas queria sua fuga.

Com os pinos de cocaína em mãos, apressou-se a andar pelas ruas da cidade. O dia já escurecia e as lojas do centro da cidade estavam quase todas fechadas. Nauê parou em frente ao que parecia ser, durante o dia, uma loja de roupas. Sentou-se num canto no chão com as pernas juntas de si, e começou a cheirar o pó branco. Para ele, aquele era mais um momento de alívio. Para seus pais, se o vissem, era mais um episódio de um tenebroso pesadelo. A cada cheirada a euforia penetrava dentro dele, como se estivesse vivo novamente, esquecendo-se, por alguns instantes, da vida que levava.

Há alguns anos ele estava na universidade, cursava o penúltimo período de Engenharia, curso que não havia escolhido por vontade, mas por tradição. Não se sentia triste com isso na época, até porque se saía muito bem nos cálculos e pretendia algum dia mudar para alguma área que gostasse mais, após se estabelecer na profissão e juntar seu próprio dinheiro. Sua família não era rica, mas levava uma vida confortável. Dinheiro para ele nunca fora problema, a única coisa que o incomodava era aquela sensação de vazio, pois, apesar de seus pais o amarem e lhe darem tudo de material que necessitava, não eram presentes e não demonstravam afeto. Não demorou para que as más influências se aproximassem e o apresentassem o mundo da fuga fácil, e não tardou, também, para que ele se deixasse cair no mais profundo abismo e se esquecesse dos sonhos que algum dia tivera. Naquele momento, aos seus 25 anos, parecia outra pessoa.

Após inalar o pó de todos os pinos, saiu sem rumo, desnorteado, pelas ruas, àquela hora com pouco movimento de carros, somente a iluminação dos postes antigos de luz. Uma fina chuva caía lentamente, e Nauê aparentava estar transtornado. Andava rápido e pronunciava coisas desconexas. Aquela euforia sentida há pouco tempo parecia se transformar em profunda depressão e desespero.

Sem perceber, subiu em um viaduto. Continuou caminhando apressado, buscando sabe-se lá o quê. Bem lá em cima, parou. Seus olhos tristes fixaram o nada, distante do mundo real. Observava alguns carros passando lá embaixo, ao seu redor a baixa iluminação da cidade, um caos contido e escondido no ar como em sua alma. Já não tinha mais o que fazer. Não podia comprar outra fuga. Jogou-se e espatifou-se 198 metros abaixo. Morreu ali, simplesmente, como tantos outros que não suportam mais a vida em seus ombros. Perdeu seus sonhos para o mundo das drogas.

Natalí Sorrentino
Enviado por Natalí Sorrentino em 19/12/2015
Código do texto: T5485453
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