VIRAVOLTA


     O sono não vinha. Levantou-se e começou a andar pelo quarto. Bateu a perna na quina da cama. Tudo ali estava muito apertado. Deixou escapar um palavrão. Iam precisar de uma casa maior. Pensar que aquela nem estava paga. Sentiu sede. O ar sufocava. Saiu, apesar de saber que podia dar de cara com a sogra. A caçula tossiu, mas não acordou. A porta do quarto estava fechada. Pelo menos a velha estava dormindo, mais a outra menina. Desceu. Sentou-se no sofá com as luzes apagadas. Queria pensar, mas nem isso era possível. Acendeu um cigarro. Em pouco, este caiu-lhe da mão.
Quase queimo o sofá. Preciso chegar à velha e dizer-lhe:- Porque não vai embora? Deixe-me aqui sozinha. Pelo menos poderia brigar, discutir, exigir. Poderia dizer-lhe que deixe de ser tão criança, tão irresponsável. "O filhinho da mamãe! Posso trabalhar, colaborar. Isso de arcar com tudo! Se ela fosse embora, eu dava um jeito. Mesmo que fosse para faltar comida em casa. Só para ele entender. Só para ele crescer... mas não. Ela está aqui. Por isso não tenho coragem. Podia largar um emprego. Ainda mais agora. Mas, e a escola da mais velha, quem é que vai pagar? E as prestações da casa, do carro. Depois, acho mesmo que ele precisa estudar. é um meio de melhorar, ganhar mais...mas até lá, o que é que eu vou fazer? Já estou com fome de novo. Vou tomar um copo de leite. Esta cozinha é tão apertada. Tudo está girando. É melhor comer uma fruta. O leite não pára mesmo no estômago. Não consigo enxergar nada, mas não quero acordar ninguém. Enfim, o que se fez, está feito. Não adianta nem mesmo chorar."

     Ele olhou-se no espelho e viu o próprio rosto. Não, não era o seu, pois estava modificado pelo cabelo. Mas aquela risca estava ali. Embora tivesse puxado o penteado para trás, o sinal persistia, por baixo das mechas. Era um sinal meio sinuoso, como um caminho, por onde a figura dela veio surgindo e, sem pudor, atravessou o espelho, invadindo o banheiro. Ela estava já vestida e arrumada, linda. Ele sentiu-se roubado, porque não era isso que ele via todas as manhãs: acordava a vista nuns cabelos baços, despertava as mãos num corpo dolente, espreguiçava a boca, em outra boca que cheirava a cigarros e lembrava a morte, a morte do amor. Lutava por fugir, mas morria junto, porque ficava ali. Era seu corpo que hesitava, mas ele era só corpo. Havia, no armário, pasta de dentes e sabonete e sais de banho e cremes e loções e tudo que não era necessário. Irrefletida, uma parte dele fugiu com ela, percorrendo o caminho do espelho e foi deslizando até o outro lado, onde havia flores e céu azul e dinamismo e vitalidade e música no ar e pássaros nos ninhos e tudo que não era a morte e tudo que era a exaltação da vida. Mas as sementes na terra eram de não-sei-o-quê, então ele a deixou, ainda que esplendorosa e voltou correndo, sem olhar para trás, sem sequer perceber as luzes que o acompanharam ainda um pouco, sem reparar no solo que seus pés haviam tocado, ao menos por uma vez, em liberdade, porque a alegria do novo o assustara. Alienou-se da busca, voltou para o conhecido, realmente seu.