Pra não dar motivo...

Seu Antenor tinha acabado de voltar da praia. Estava sentado ao lado do chuveiro que os banhistas usavam para remover a areia da praia antes de embarcar no elevador e subirem para os respectivos apartamentos. Ali, sentado, ficava vários minutos esperado secar-se, antes de subir para seu apartamento. O porteiro, o síndico e até mesmo o zelador, no começo insistiam que ele podia subir assim mesmo, molhado, pele, sunga e chinelos, que não tinha problema, que o elevador era de serviço, para isso mesmo, afinal era um apartamento de praia e etc. mas seu Antenor nunca quis. "Não quero dar motivos" respondia. E assim era. E assim eles cansaram e desistiram depois de conhecerem melhor seu Antenor. Até o lixo, embalado de forma diferente dos outros condôminos e usuários temporários de alguns apartamentos, denunciava: era o lixo do seu Antenor. "Seu Antenor, o senhor tem um trabalhão para embalar todo arrumadinho seu lixo. Se visse como as pessoas não se dão ao trabalho nem de ensacar nada..." explicava Maria a diarista. Mas quando se dava conta que estava interferindo, já era tarde. A resposta rabugenta e seca já tinha saído: Não quero dar motivos.

Com a mulher, agora falecida havia dois anos, vítima de um infarto fulminante, era a mesma coisa. Quando se casaram, ainda na lua-de-mel, Antenor tinha arrumado tudo no quarto e providenciado uma panacéia afrodisíaca (não tinha Viagra naquela época) para dar conta do recado. "O que é isso Antenor?", a mulher perguntou, assim meio retraída, afinal nunca tinha passado por nada parecido. A resposta: Fique tranquila, meu bem. É pra não dar motivo.

Durante o tempo em que passaram juntos, a mulher - que no começo, e bota começo nisso, tinha achado estranho - foi se acostumando. Qualquer hábito novo ou atitude estranha, já sabia: Era para não dar motivo.

Em certa ocasião, os filhos - tinham tido um casal - já adolescentes, resolveram dar uma festa em casa. Até aí, tudo normal. Convidados chegando - sendo que a maioria era colega de escola - refrigerante, salgadinhos e doces. Nem bebida, nem musica alta. Só uma festa mesmo dessas para reunir a "galera". Tudo transcorria na maior animação quando chegaram os seguranças e começaram a revistar todo mundo e a fazer revista em quem chegava à porta da casa do Antenor. "Pai! O que é isso?" a filha mais velha questionou aflita. Mas já sabia a resposta. Tiveram que mudar de escola.

E assim foi a vida inteira. Antenor sempre preparado para "não dar motivo". Foi então que a esposa morreu. Tinham ambos se aposentado e mudado para uma cidade litorânea. "É melhor para controlar a pressão dela Seu Antenor" sugeriu o cardiologista. Não tinha nem seis meses que haviam se mudado, ela caminhando na praia, caiu. Antenor providenciou tudo. Avisou os filhos e a família minutos antes do sepultamento. "Mas como assim, daqui uma hora?" perguntaram alguns. "Melhor assim" respondeu lacônico. "Para não dar motivo".

Dia desses, Antenor sentiu-se mal. Tonto, muita dor no peito. Deitou-se para descansar. Sozinho, no pequeno apartamento, foi encontrado, por sorte pela diarista que chegaria dali a alguns minutos. O corre-corre foi grande na porta do prédio com direito a ambulância do SAMU e tudo mais. Antenor estava sendo levado para o hospital indicado mais próximo e depois seria transferido para um que fosse do plano de saúde. Fichado e internado e recebeu os primeiros cuidados, quando uma troca de fichas e um paciente internado na mesma hora que ele - um indigente que passava mal no meio de uma avenida da cidade - mudariam o curso dos destinos de ambos.

Antenor havia sido removido para a unidade de pronto atendimento daquele hospital. Ficaria esquecido ali por umas horas até que passaria mal de novo e o atendimento lhe seria negado - tinha acabado de dar entrada no PS um grupo de acidentados graves de uma ocorrência de trânsito - e então o inevitável. As fichas, que faziam parte do seu prontuário, seriam sido trocadas. Antenor não era mais Antenor. Era Zé. Um Ninguém. E sem família. Sem amigos. Sem nada. Ali, foi encontrar com a mulher. Foi enterrado em vala comum, sepultamento simples, lapide de indigente. Ninguém viu. Ninguém soube.

Mas não precisava. A vida não quis dar motivos.