CARNAVAL COM PAPAI NA AVENIDA

O bonde 94-PENHA já passava em Olaria se arrastando nos trilhos e oscilando como um pêndulo no ritmo do entusiasmo dos passageiros. Superlotado de foliões e folionas, balançava ao som do coro de vozes juvenis:

–“Socorro, eu morro, o condutor tem cara de cachorro!

Socorro, eu grito, o motorneiro tem cara de cabrito!”

Meu pai não tinha medo da multidão. Punha a filharada à sua frente, empurrava-nos para o interior do vagão com volumoso abdômen e ainda comentava alegre:

–“Eta bondinho satisfeito!” (Ele gostava de usar esta palavra como sinônimo de "cheio")

Era uma longa viagem até o centro da cidade, mas o clima de animação no bonde era tamanho que não sentíamos nenhum cansaço. De pé sobre os bancos de madeira, os passageiros batucavam e dançavam freneticamente.

Eu me perguntava de onde viria aquela disposição carnavalesca de papai, que mobilizava toda sua obesidade bonachona a serviço da diversão dos filhos, alguns bem pequenos ainda. O corpanzil pesado, em vez de empecilho, transformava-se em ferramenta para nossa proteção.

Quando eu nasci, penúltimo de uma longa sucessão de dez filhos, meu pai já passava dos quarenta, tinha bronquite asmática e cultivava uma úlcera duodenal de estimação. Mesmo assim, não havia na família folião mais animado que ele. Chegando fevereiro, ninguém o segurava em casa...

Na época em que nós éramos crianças, meu pai já não sambava no pé como fazia nos tempos dos primeiros filhos, mas parecia querer legar-nos o espírito folião que sempre tivera: falava aos pequenos com entusiasmo dos carnavais de outrora: do Corso, do Entrudo, da Mi-Carème no Assyrio, do bloco Rosa-de-Ouro ("Oh! Abre alas que eu quero passar..."). Decorava com capricho o pequeno jardim de nossa casa suburbana para o evento quase tanto quanto o fazia para o Natal. E, assim, ia colorindo nossa vida, a cada ano, com as serpentinas e os confetes de uma infância feliz. Para as moças adolescentes escolhia e comprava pessoalmente as últimas novidades da moda. Quanto às crianças menores, comprava os tecidos, aviamentos e passamanarias, e mandava as irmãs mais habilidosas na costura, transformarem-nos em ciganos, toureiros, príncipes, rajás, princesas das czardas, piratas, mexicanos ou índios.

Agora, meio-dia de Sábado de Carnaval, depois da turbulenta viagem no bonde carnavalesco, aqui estamos pisando o asfalto em brasa da Avenida Rio Branco castigada pelo sol de fevereiro. Rodopiamos meio desajeitados nos passos dos "Vassourinhas” e "Pás Douradas", animados blocos de frevo nordestino.

– Mete a tesoura! – grita papai do meio-fio, ao nos ver dançar...

A esta altura já sabemos que até a Terça-feira Gorda estaremos aos cuidados daquele que sempre foi um genuíno folião carioca. Na cidade, entre a passagem de um cordão e outro, nossos deslocamentos se dão de maneira semelhante ao embarque no bonde, mas agora papai vai à frente abrindo caminho entre a multidão com ritmadas barrigadas, e os filhos atrás, em fila indiana, meio apavorados. Quando algum punguista tenta bater a carteira dele, coisa comum nestes dias, ele reage com humor e grita apenas: "È PUNGA! Tira a mão do meu bolso! – e continua a caminhar no clarão deixado pelo povo ...

No tumulto da passagem de algum bloco mais elaborado em ritmo e fantasias, entusiasma-se tanto que sempre pega um dos filhos menores às costas, ergue-o bem alto para que possa ver melhor, tudo sob o protesto da multidão lá de trás, prejudicada em sua visão. Em represália, atiram ao perfeito alvo de sua careca luzidia pedaços de cascas de laranja ou bolinhas de papel amassado. Na minha vez de ser erguido, fico acovardado pelos protestos do povo e digo rápido: “Tá bom, pai, já vi, pode me descer!” Mas ele não atende até que se convença de que realmente desfrutei o prazer de apreciar toda a beleza do bloco que passa.

Mais tarde, na volta para casa, ainda paramos numa roda formada em uma esquina de nossa rua, em meio à névoa de poeira levantada pelos saracoteios dos foliões. Ali, aproveitando os restos dos acordes de sambas e marchinhas que escoam pelas janelas abertas no sobrado do salão do Éden Clube de Olaria, papai volta a insistir para que desfrutássemos a folia.

Nos dias subsequentes repetia-se o ritual: cada vez mais animado, papai agitava-se para assistir às Escolas de Samba, aos Ranchos e, finalmente, na Terça-feira Gorda, às Grandes Sociedades.

Nas cinzas da madrugada de quarta-feira, ainda extasiados com a beleza de tudo que tínhamos visto, voltávamos rapidamente ao nosso longínquo subúrbio, se não nos surpreendesse pelo caminho um daqueles aguaceiros de verão tão comuns no Rio de Janeiro. Quase todos os anos, nesta época, eles vinham arrefecer o ímpeto popular, colando o cetim das fantasias aos corpos extenuados e despregando delas as últimas lantejoulas amolecidas pelo contato da água.

Impetuosas tempestades dos fevereiros de minha infância!... Só não conseguiam abater o entusiasmo carnavalesco de meu pai que, certamente, no ano seguinte, estaria outra vez com a filharada colocando seu animado bloco na rua.

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Renato Alves
Enviado por Renato Alves em 09/02/2016
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