3.1

Após duas latinhas de cana, cinco churrascos de gato e uma porções de batata-frita feita com o óleo de anteontem, você começa a perceber que sua vida pegou o ônibus errado e foi parar em algum ponto distante daquele que você queria estar aos trinta e um. Você para, olha ao redor e se dá conta de que a única pessoa que talvez ainda goste de você, provavelmente pelas boas gorjetas e convivência maior que qualquer relacionamento que já tive, seja o Leôncio, melhor garçom do Kintal II. Barrigudo e de bigode, faz jus ao apelido desde quando começou a trabalhar por aqui.

_ Tudo certo, Seu Luiz?

_ Tudo tranquilo, meu querido.

_ Vamo na saideira?

_ Rapaz, hoje vou recusar.

_ Tem certeza? Essa é por conta da casa.

_ Tenho sim, meu amigo, tenho muito que trabalhar hoje.

_ Livro novo?

_ Quem dera. Escrevo, escrevo e escrevo, mas nada que dê pra juntar num livro novo. Entende?

_ Ah, sei. Eu ainda tô pra ler aquele que o senhor me emprestou.

_ Leia, meu caro, Guilherme é um grande amigo e, modéstia parte, um dos melhores escritores daqui. Esse foi o primeiro livro dele – já deve fazer uns nove-dez anos que foi lançado.

_ Vou ler sim.

_ E eu vou querer saber o que achou. Agora vamos deixar de conversa fiada qu’eu preciso ir pra casa. Pendura pra mim?

_ Sempre, doutor.

Levantei meio tonto e perto da porta esbarrei num bombado de pochete, com cabelo ridículo, que resmungou alguma merda qu’eu teria revidado se estivesse sóbrio. Esse lugar já foi melhor frequentado, pensei, e continuei devagar pela avenida até chegar na parada do 50, em frente ao Nordestão. Tentei sentar num canto do banco e quase caí. Deve ser a porra da velhice chegando, comentei com uma senhora baixinha de cabelos grisalhos que também estava na parada. Ela não respondeu. Cinco. Dez. Quinze. Vinte minutos e nada de ônibus. Nenhuma novidade, é claro, desde meus tempos de adolescência que o transporte público de Natal não funciona direito. Levantei-me com o mínimo de decência que ainda restava e ensaiei atravessar a rua até o ponto de taxi, foi quando a vi passar no banco do passageiro de um carro nada popular. O seu olhar esbarrou com o meu e me jogou há uns quinze anos de distância atrás.

_ Três especiais, por favor.

_ Três?!

_ É. Ele sempre pede três. Pra no fim das contas ainda querer o meu.

_ Claro que peço, é a melhor parte de namorar com você.

_ Vocês são o melhor casal do IF, sério.

_ Não tenho dúvidas.

_ Quando formos casar podemos trocar o menu do Buffet pelo cardápio aqui do Nero’s?

_ Não poderia ser diferente.

_ Amores, preciso ir. Vou ter aula já já e não quero atrapalhar a comemoração de namoro de vocês. Beijo.

Aquele dia foi massa, completávamos nosso primeiro ano. O Nero’s era nosso point da adolescência, todas as sextas depois do cinema de quatro conto íamos pra lá. Na época da faculdade também tínhamos nosso lugar especial, o Bar de Mãe. Perdi as contas dos porres, amigos e brigas que tivemos por lá. Pra falar a verdade, nunca fomos de nos importar com os lugares “chiques” que a classe média natalense costumava frequentar. E nos orgulhávamos disso. Pra gente bastava ter comida boa/barata e tava tudo certo. Isso, é claro, até tudo desandar quando ela resolveu passar um ano na Europa e voltar de lá com o galegão de um metro e noventa de olhos azuis.

_ Passei no Ciência Sem Fronteiras, amor.

Um tiro no coração. Um misto de saudade e medo, mesmo antes dela embarcar no avião. Era como se o circular da UFRN lotado de calouros suados passasse por cima do meu peito e eu ainda sorrisse por isso. Porra, era a chance dela de viver o sonho, de sair dessa cidade linda de merda e calor infernal. Eu jamais impediria. Tava feliz sim, apesar do meu egoísmo. Terminamos quatro meses após ela chegar lá. Todo mundo ficou na merda. Inclusive eu. Era foda, a galera não me deixava esquecer. De cinco pessoas, seis me perguntavam se eu achava que voltaríamos quando ela chegasse em Natal. Eu fiquei na bad por duas temporadas de Game of Thrones e mais um rebaixamento do Vasco, mas depois entendi que essas coisas acontecem, não é mesmo? Tive notícias dela até um tempo desses, depois sumiu completamente. Quer dizer, eu sumi completamente. Quando me dei conta da vida o taxi, que não sei como fui parar nele, já tava entrando na rua aqui de casa. Dei uma nota de vinte e disse que ficasse com o troco. Meia hora de bêbado até achar a chave e mais uma hora para abrir a porta. Roupa no chão. Uma lata de Schin (é o que tinha) semi-gelada na mão. Poltrona. Será que ela me viu? Indaguei com a certeza da resposta. Será que ela percebeu o mesmo olhar em volta dos trinta quilos mais gordo, do dobro de olheiras e da barba grisalha? Espero que sim, pensei. Eu era o mesmo, mesmo com uma década de metamorfose e sete livros publicados. Eu era o mesmo, pensei, mesmo ainda sendo uma subcelebridade nas medíocres rodas de poesia dos cafés que ninguém mais frequentava. Apesar de tudo, eu era o mesmo que sempre a amou. E se ela não tivesse ido? Talvez eu tivesse três filhos: Lara, Luiza e Heitor. E se eu tivesse me esforçado para ir junto? Talvez eu tivesse um bom emprego. E se eu não tivesse brigado com ela enquanto ainda estava lá, só por causa de uma foto com os amigos num bar europeu? Acho que talvez eu nem fosse esse artista de merda que me tornei. Ainda moraríamos no Brasil? Ainda estaríamos juntos? Nosso cachorro já teria morrido? E meus pais, ainda gostariam dela. Talvez. Talvez. Talvez. Levantei a latinha, em forma de brinde, e a olhei. Era como se ainda pudesse enxergar aquele lindo sorriso de anos atrás se afogando num mar de álcool, que um dia fez parte de mim. Brindei ao meu amor de uma vida inteira e àquela vida em que possivelmente, e bem provavelmente, eu seria uma pessoa extremamente feliz.

Gonzaga Neto
Enviado por Gonzaga Neto em 18/02/2016
Reeditado em 03/08/2016
Código do texto: T5547067
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