O Vestido, o Carro e o Jogo de Talheres de Prata

Dona Lúcia tirou a roupa do varal e levou para o quarto. O vestido azul com detalhes dourados nunca fora usado, mas de tempos em tempos, de anos em anos, ela costumava lavar a peça para que não ficasse encardida com o tempo. Era o vestido que mais gostava no guarda roupa, aquele que guardava para o momento mais esperado de sua vida: um jantar naquele italiano no centro da cidade, ao lado da Floricultura, onde experimentaria o sabor do tal ossobuco com talharine ao ragu, segurando aquelas taças de vinho que costumava ver em filmes, enquanto conversava com o homem que esperava por todos aqueles anos. O homem que se encaixaria em sua lista de exigências, redigida com base em matérias de revistas femininas e livros sobre o amor e a paixão. Dona Lúcia costumava anotar situações e características de seu príncipe encantado quando via filmes na TV, lia romances na varanda ou assistia comerciais nos intervalos de seus programas favoritos. Dona Lúcia esperava.

Seu Mauro comprara aquele carro já há um bom tempo, mas quem passava na frente da casa e num daqueles raros momentos em que o veículo estava sem a capota de proteção plástica teria a certeza que o carro tinha menos de um ano. Foram meses e meses visitando concessionárias, refletindo sobre a cor da pintura, sobre o tipo do estofamento, sobre a potência do motor, até que Seu Mauro finalmente decidiu e levou o veículo para a casa. Agora, todo domingo pela manhã, costumava tirar o carro da garagem, estacionar na porta de casa e lavar, por longas horas e com todo o cuidado, a pintura que nunca estava suja e o estofamento que raramente era usado. Os vizinhos já estavam acostumados com aquela cena e com a que vinha sempre depois: ele e a esposa saindo para almoçar no carro irretocável. O bom e especial almoço de domingo. O único momento da semana em que o casal comia fora de casa.

Vitória se casara com Guido fazia poucos anos. Dividiam um apartamento simples mas caprichado perto de uma estação de Metrô do centro. Enquanto o marido trabalhava de segunda a sábado, quase o dia todo, Vitória permanecia em casa cuidando do que lhe era exigido. Naquela manhã, limpava os talheres de prata que descansavam guardados todos os dias numa gaveta da sala. Era a prataria para jantares especiais. Uma refeição para o chefe de Guido, para a comemoração de uma promoção, para a recepção à família do marido ou dela mesma em visita vinda do interior. Vitória limpava e guardava os talheres com todo o amor que mereciam. Porque eram especiais.

Dona Onete nunca encontrou o príncipe encantado que Dona Lúcia aguardava. Não fazia almoços especiais aos domingos como Seu Mauro. Não esperava jantares especiais em sua casa, como Vitória. Porque a vida de Dona Onete fora sempre bem agitada. Filhos e netos viviam indo e vindo, aparecendo para cafés-da-manhã, almoço ou apenas um lanchinho no meio da tarde. Amigos e vizinhos vinham bater papo nos raros momentos em que ela estava em casa, afinal, costumava fazer compras, ir ao cinema, visitar amigos, ver concertos e peças de teatro. Viajar era também uma paixão. Dona Onete, nessa vida bagunçada e sem rotina, não tinha tempo para separar em sua agenda o que alguns chamavam de momentos especiais. Para ela, cada dia era especial. Por isso usava os vestidos que mais gostava até furarem e virarem pano de prato. Colocava o carro na rua todo dia e muitas vezes ficava sem tempo de mandar lavar. Servia os talheres de prata e o jogo de chá de porcelana mesmo quando comia sozinha. Um de seus netos havia inclusive quebrado duas xícaras, já. Dona Onete não tinha tempo para esperar. Quando algo muito especial acontecia, dessas situações raras que surgem poucas vezes em nossas vidas, claro que ela aproveitava e com prazer, mas não costumava ficar esperando por elas. Sabia que a graça estava na sessão de cinema, sozinha, das 15h30 em uma segunda-feira. Na cervejinha com amigos, no bar da esquina, numa noite de quarta. Nos bolinhos que fazia numa tarde chuvosa. Nos netos correndo pelo quintal nos finais de semana. Dona Onete era grata por cada uma destas muitas oportunidades que tinha todos os dias de tocar os próprios lábios e encontrar um sorriso. De sentir os olhos fechando de alegria. De suspirar de prazer. De se deitar cansada mas satisfeita pelo dia que teve. De poder ficar em casa sem fazer nada quando queria. De poder ligar para alguém quando quisesse. Porque ela não acreditava em momentos especiais, nem em pessoas especiais. Acreditava em tornar o que quisesse numa lembrança especial.

Dona Onete não era amiga de Dona Lúcia, não conhecia Seu Mauro, mas cruzara com Vitória num supermercado, apesar de não terem conversado. Fazia muito tempo. Mal notara a jovem que tocava os tomates sem saber muito por quê. Mas Vitória reparara na velha senhora. Como andava agitada e com pressa, empurrando um carrinho cheio de compras. Vira as garrafas de vinho e também a de cachaça. Deveria ser dessas senhoras doidas que vemos por aí, falando alto e que não se comportam como se espera de alguém daquela idade, pensou.

Dona Lúcia nunca usou o vestido nem sentiu o gosto do ossobuco. Seu Mauro morreu anos mais tarde e sua esposa vendeu o carro. Vitória serviu os talheres de prata em alguns momentos especiais. Dona Onete morreu depois de tropeçar numa pedra na orla de Ipanema, numa viagem com as amigas. Ficou duas semanas no hospital com o fêmur quebrado antes de falecer. Não se sabe o que houve com Guido.

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Daguito Rodrigues
Enviado por Daguito Rodrigues em 22/02/2016
Reeditado em 25/02/2016
Código do texto: T5551406
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