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Epígrafe

 
A sala do castelo é deserta e espelhada.

 
Tenho medo de Mim. Quem sou? De onde cheguei?
Aqui, tudo já foi... Em sombra estilizada,
A cor morreu - e até o ar é uma ruína...
Vem de Outro tempo a luz que me ilumina…
Um som opaco me dilui em Rei...
 
                      Mário de Sá-Carneiro*
 





 
O FIM
 
 
Até que chegou o dia...
 
Carlos sentiu aumentar a luminosidade do quarto, aos poucos visionou vultos entrando no espaço. Essas figuras foram ficando lentamente identificáveis. A custo olhou à volta, distinguiu rostos difusos por entre a neblina que lhe dificulta fixar o que rodeia a cama.

Esforça-se por perceber quem o circunda. Faces que vão ficando lentamente mais nítidas, a custo vai reconhecendo os rostos, sobretudo a Lú, seguindo-se outras e a fila alongando-se com mulheres de menor significado e que estão agora a rodear o seu leito de morte. Silenciosas, olhando-o.

Estão à espera de quê? Despedindo-se apenas ou gozando uma doce vingança pelo mal que ele lhes fez, por as ter usado e desprezado? Amou-as a todas, mais umas que outras é certo, mas o grande amor da sua vida, a verdadeira paixão foi Lú, ela foi a única que amou de forma suprema e Deus lha tirou no apogeu da felicidade. No entanto, não consegue ver ódio nos seus olhos.

Reconhece doçura no olhar de algumas, em nenhum rosto constata desprezo ou ira. Talvez dó, talvez pena, perante o seu débil estado. Tenta olhá-las uma a uma, fixamente. Embora algumas tenham abandonado precocemente a sua vida, vê-as como sempre as viu, flores frescas, joviais e tentadoras, lindos pedaços de mulher. Olhá-las é um prazer, o seu último prazer. Como se o tempo apenas tivesse parado para elas. Agora que está no final do percurso, sem dúvida que vieram constatar o farrapo em que se tornou. Por contraste com o homem atraente que foi, agora certamente parece um trapo velho.

Virou o rosto para a janela, apenas uma mancha branca, o dia cinzento e chuvoso, então algumas lágrimas escaparam, rebeldes, rolando-lhe pela face.

Os minutos vão passando, cada instante é mais penoso, ele quer respirar mas a dor aguda no abdómen não lhe deixa fazê-lo, é como se uma faca lhe trespassasse a zona. As pálpebras começam a pesar, fecha os olhos.

De repente sente falta de ar, tenta a custo abrir os olhos mas não consegue, nem tem forças para tal. Olha à volta, penosamente, os vultos lá estão, mas cada vez mais difusos…

Faz um último esforço para fixar de novo as ex-amantes mas já não consegue ver senão manchas disformes. Então sente como se a cama se estivesse a afundar e o seu corpo ficasse cada vez mais distante delas. Mesmo de olhos fechados constata que está baixando à terra, ao submundo.

Afunda-se mais e mais, deixa de ouvir vozes, a escuridão é total.

Está rodeado pela ausência de som e pelo escuro.

De repente… Um túnel, uma luz imensa e depois tudo fica negro, definitivamente…

É o sono derradeiro…

 
Adeus.
 



 
EPÍLOGO DO LIVRO “MEMÓRIAS DE UM SEDUTOR”
 
 
 
 
 
* Mário de Sá-Carneiro (1890 - 1916) foi um poeta, contista e ficcionista português, um dos grandes expoentes do modernismo em Portugal e um dos mais reputados membros da Geração d’Orpheu. Foi o maior amigo de Fernando Pessoa. Suicidou-se aos 25 anos, na cidade Luz.



 
Ferreira Estêvão
Enviado por Ferreira Estêvão em 14/03/2016
Código do texto: T5573015
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