LIVROS

"Saindo de um restaurante de luxo,

depois de regalar-se com lauto banquete,

o ricaço dirige-se humilde a um pedinte:

____ Senhor, auxiliai-me com qualquer coisa

para a minha digestão."

É rico quem lê; é humilde quem aprende.

Esse conto, (não encontro outro modo de qualificá-lo), escrevo em homenagem ao escritor do recanto Antenor Rosalino.

Antenor é escritor e poeta aqui de Araçatuba, cidade que tem bons escritores e gente sem juízo.

Um deles, bom profissional, já mandou recado que é candidato a prefeito.

Ou seja, vai sair na chuva e se molhar.

Quando moleque, quando não tinha o que fazer, saia para engraxar sapatos na rua.

Eu e meu irmão, cada qual para o seu lado.

Meu irmão lá pelos lados da rodoviária velha; eu lá pelos cantos do estádio - batendo de casa em casa: "A senhora tem sapatos para engraxar?"

Findo o trabalho ia assistir aos treinos de futebol, ser gandula, coisa que gostava.

Eu vivia uma experiência melhor; meu irmão arranjava mais encrencas.

Por meu lado, quando alguém tinha sapatos para engraxar, trazia todos da casa. E regateava no preço; compensava, porque eu engraxava número maior de sapatos.

Era minha preferência.

Havia, também, outra questão.

Meu irmão engraxava sapatos nos pés das pessoas que aguardavam ônibus.

Por esta razão tinha que levar caneleiras, (que fazíamos de papelão), marrom com marrom, preto com preto, (não se podia misturar), que era para não sujar as meias do freguês.

Era tinta e graxa.

Por mais que caprichasse sempre respingava tinta na meia do malandro que em contrapartida dizia:

"Não vou pagar, você sujou a minha meia".

Meu irmão (mais novo) sempre gostou de encrenca; eu de mais tranquilidade.

Acho que esta foi a razão dele hoje trabalhar num rigoroso órgão público onde rigorosamente examina papéis.

É fiscal da burocracia, homem de certezas e um carimbador maluco.

Sempre que eu me dava por satisfeito, antes de ir ao estádio, comprava um doce numa padaria.

Sentava-me no meio fio, com a caixa de engraxar entre as pernas, e ficava a mordiscar o petisco, devagar, que era para o prazer durar bastante.

Certo dia, assim estava quando, logo a minha frente, do outro lado da rua, uma mulher solitária olhava para mim.

Eu sempre a via no mesmo lugar e embora o local parecesse uma casa eu nunca perguntei-lhe se tinha sapatos para engraxar.

Achava que a preocupação dela era outra.

Depois que terminei o doce ela fez sinal para eu me aproximar.

Quando cheguei na mureta que dividia a propriedade da rua, ela convocou-me:

"Entre aqui".

Deixei minha caixa de engraxar na varanda, atrás de um vaso, para que não roubassem.

Ela me aguardava na porta larga, completamente aberta.

Ocorreu-me que mesmo estando aberta a porta o tempo todo, ninguém entrava ali.

O lugar era limpo e cheirava a cera de chão, que recordo-me, rescendia levemente à gasolina.

Ela acolheu-me com um grande sorriso.

Eu fiquei parado na porta.

Nas paredes e nas prateleiras distribuídas no centro da sala, uma infinidade de livros.

"Entre, não tenha medo".

Dizem que os anjos habitam as bibliotecas.

Posso dizer que a afirmação sempre foi a imagem que ficou em minha cabeça naquele momento.

Calado fiquei a passear pelo recanto, encantado, diria até hipnotizado.

Ela colocou a sua mão direita sobre o meu ombro e conduzia-me como um anjo da guarda, cuja imagem de proteção eu tinha numa moldura no meu quarto.

Eu dava passos lentos, lendo os títulos, meio com a cabeça curvada, porque os livros estavam arquivados de pé.

Cores variadas, capas duras, lindas encadernações.

"Nunca leu um livro?" - perguntou-me.

Não respondi.

Já tinha lido livros escolares, e até um livro de conto, que Eliezer, um tio por afinidade, havia me dado. Chamava-se "Meu nome é Hiram".

Gostara da leitura e da história de uma corrida de sapos.

Era um livro americano, que falava sobre a infância de um grupo de meninos pobres, que se pareciam muito com a gente, com que a gente via e com que fazia.

Ela apontou-me uma escada de madeira, não muito alta, e pediu-me para buscá-la.

Encostei-a na prateleira e ela apontou-me um livro de capa verde:

"Pegue aquele livro".

Eu estava no chão e comecei a subir, degrau por degrau, e nesse momento compreendi que era assim o mundo em que eu vivia.

Era uma escada e sempre haveria algo que eu deveria alcançar.

Quando desci, com o livro na mão, ela pediu para eu ler o título:

"Caçadas de Pedrinhos", Monteiro Lobato.

Ela elogiou-me:

"Você lê bem."

Levou-me até uma mesa com cadeira e eu passei a tarde a ler.

Perdi o treino de futebol.

Voltei quase todos os dias.

E sempre ficávamos somente eu e ela.

Empanturrei-me de leitura.

Toda obra de Lobato; inclusive os escritos para adultos.

Depois passei para outros autores, que ela indicava.

Ficamos amigos.

Isso faz bastante tempo.

Posso afirmar que tornei-me um homem rico, de leitura.

E que há muitas pessoas ricas, de bens materiais ou posição social.

E cada um é o que é, portanto, às vezes, sinto-me como o personagem da piada que abre este conto.

É quando vejo pessoas que tem de tudo, menos educação, esbravejarem seus preconceitos, suas rasas convicções, suas tristezas e lhes faltam bom argumento.

E que tudo seria melhor se lessem e pensassem bem...

Que apenas fossem mais educados, comportamento que pavimenta as boas relações.

Dá vontade de pedir a essas pobres pessoas que leiam, estudem, e assim auxiliar-me com algo que melhore a minha digestão.

E lembrar a eles que:

"Se você é o que tem,

se você é o que te ocupa,

se perder o que tem,

ou perder o que lhe ocupa,

Quem ou o que você é?"

...................................................

Este texto é o que eu classifico como "cozido".

Vou colocando tudo o que tenho dentro da panela

e no final está pronto.

Ás vezes fica bom; às vezes não.

Mas é o que eu podia fazer.

Obrigado pela leitura.

Sajob - abril / 2016