UM PRONTO-ABANDONO E A AGONIA DA TORTURA

Estava naquele lugar pela terceira vez,não como aluna de Enfermagem ou como acompanhante de enfermo da família,mas como mestre de uma turma de discentes do curso técnico de enfermagem do SENAC - Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial.

Era um grande pronto-socorro,mas para mim era um verdadeiro pronto-abandono. Onde todos estavam prostrados e entregues nas mãos de corações petrificados.

Nunca gostei daquele lugar. Nada mudava! Apesar da reforma do hospital e organização quanto ao atendimento por cores (acolhimento com classificação de risco), as pessoas continuavam as mesmas... exalando aquele cheiro de indiferença em relação ao outro (pacientes,colegas de trabalho) misturado ao cheiro de tinta nova do ambiente. Sem dúvidas, o local demonstrava querer mudanças,mas as pessoas as quais eram integrantes do mesmo,contribuindo com sua força física de trabalho, preferiam continuar egocêntricas. Eram máquinas acostumadas com o trabalho em quantidade e em série, onde os produtos de todas suas ações laboriosas impostas eram vidas fragilizadas à mercê de tais robôs.

Cheguei cedo com meus alunos. Seria a primeira aula prática deles. Estavam muito nervosos diante de toda aquela agitação e energia pesada da equipe do setor da Clínica médico-cirúrgica. Ninguém nos recebeu bem. Tentei ser carismática, agradável e mesmo assim não recebi um sorriso sequer daquela equipe de saúde. Eu,a professora fantasma, apresentei-me e já fui invadindo o posto de enfermagem o qual parecia mais uma trincheira de guerra,pois quem se debruçava no parapeito do balcão para pedir algum tipo de informação era bombardeada com grosserias e olhares desdenhosos. Peguei alguns prontuários e procurei me ater apenas aos alunos. Avaliei os registros de acordo com o mapa de pacientes do dia (lista com o nome do cliente, leito,enfermaria e diagnóstico) para tentar encontrar doentes não tão complicados,mas que precisassem de cuidados básicos e essenciais para a formação inicial dos meus alunos.

Separei meus alunos em duplas. Como notei o estresse e a sobrecarga de trabalho dos técnicos de enfermagem daquele setor,resolvi distribuir cada dupla em uma enfermaria diferente. Daria mais trabalho para eu observá-los,mas agi com bom senso e acabei agradando os funcionários. Pois,já era uma grande ajuda para eles.

Durante minha avaliação dos registros dos prontuários,verifiquei que um deles parecia estar escrito de forma muito superficial ou mesmo incompleto. Era um paciente que apresentava uma úlcera por pressão em região sacra - final da coluna. (ÚLCERA POR PRESSÃO -ferida que se forma devido à pressão constante em calosidades ósseas do corpo causando mal suprimento sanguíneo para a pele por falta de mudança de decúbito). Porém, a descrição da ferida era mínima. Não dizia sua profundidade, seu tamanho,aspecto...nenhum detalhe! Como desconfiei,fui verificar da porta da enfermaria o tal paciente. Vi de longe um homem bem jovem, com no máximo 20 anos de idade, deitado em decúbito lateral em seu leito e coberto com lençol até o pescoço. Ele estava acordado e olhando para mim! Decidi de forma rápida que uma das duplas cuidaria dele. Não podia mais perder tempo. Tinha muito trabalho pela frente! Confiei nos escritos!

Ao voltar para o posto de enfermagem e ajudar os alunos a colher os materiais para os cuidados de seus pacientes, reparei que um cirurgião estava para realizar o debridamento daquele paciente jovem com registro mal feito. (DEBRIDAMENTO -ato mecânico com pinças e tesoura cirúrgicas para retirada de tecido desvitalizado,morto de uma ferida para que a mesma consiga avançar no seu processo de cicatrização). Tive, então, que agilizar o preparo de material para o curativo do tal jovem,enquanto isto a dupla responsável por ele cuidava dos materiais para o banho no leito.

Ao chegar na enfermaria de oito leitos com pacientes acamados, senti a inquietação do lugar. O técnico estava muito estressado. Não era para menos! Ele estava sozinho e tendo ainda que lidar com a falta de materiais para trabalhar. O ambiente estava muito quente!

Chegamos perto do jovem e nos apresentamos. Ele estava muito irritado...impaciente...com raiva! Aí lembrei de uma grande professora,a sábia Cristina, quando nos dizia: "Prestem mais atenção não nos pacientes pacientes,mas nos pacientes impacientes." Segui suas palavras. Percebemos que ele não queria conversar e respeitamos. Olhei sua boca e os dentes estavam quase escuros de tanta sujeira acumulada. Pensei: "Meu Deus! Por que isto? O que está acontecendo aqui?" Ele poderia escovar os próprios dentes,mas vi que não tinha seu material de higiene. E geralmente a família é quem traz. O hospital não arca com estas despesas. Tentei instigá-lo a falar sobre a família e a única coisa que ele nos disse de forma grosseira foi: " Não recebo visita não." Estava explicada a falta de material de higiene,mas não a falta de cuidados. Não custava nada a equipe de saúde comprar uma escova dental e uma pasta de dente para ajudar seu paciente, orientando o mesmo para escovação. Sim...ele podia fazer isto sozinho,não era um doente inconsciente.

O sol da janela queimava ele e logo damos um jeito arrastando a cama para longe do calor. E foi aí que ele nos contou que passava quase o dia todo no sol!

A dupla o descobriu para começar o banho e reparei que ele tinha mais duas feridas...eram de balas alojadas na região do quadril e de coxa as quais viviam drenando sangue com o movimento do mesmo. "Isto não estava no registro e já tem um tempo que ele estava aqui. Por que não retiraram as balas?",pensei comigo mesma. Não dei seguimento aos meus questionamentos e apenas ajudei a dupla. Afinal o cirurgião já estava por vir para realizar o debridamento.

Quando viramos o magro jovem...tinha um curativo grande que vinha do meio das costas até parte das nádegas. As meninas lavaram logo as partes descobertas de curativo e enxugaram rapidamente,pois o médico já estava à espera para começar o procedimento. Quando descobri toda a ferida fiquei chocada...terrivelmente sem palavras. Agora entendia toda agonia daquele paciente. Era uma agonia de dor pelo abandono total...dor do preconceito...dor do julgamento silencioso através do ato de desprezo. No entanto,prefiro classificar tal sofrimento como a agonia da tortura! Não era aquela tortura às escuras que acontece em algumas prisões do nosso país...era uma tortura às claras vinda de responsáveis pelo cuidado alheio e não de más autoridades policiais. Contraditório,mas real!

Nietzsche no século XVIII já percebia a indiferença dos profissionais de saúde naquela época. Em um de seus aforismos chamado - Moral para os médicos, relatou: "O doente é um parasita da sociedade. Num certo estado, é indecente viver mais tempo. Prosseguir vegetando em covarde dependência de médicos e tratamentos, depois que o sentido da vida, o direito à vida foi embora, deveria acarretar um profundo desprezo na sociedade. Os médicos, por sua vez, deveriam ser os intermediários desse desprezo - não apresentado receitas, mas a cada dia uma dose de nojo a seus pacientes..."

Nunca tinha visto uma ferida daquela profundidade e tamanho. Era uma Úlcera por pressão de último estágio. Atingiu todas as camadas da pele,músculo e ossos. Dava para ver partes das vértebras. Quase nem tinha mais nádegas. " Santo Deus...que triste!", refleti comigo mesma.

O médico começou a retirar alguns pedaços desvitalizados...eram muitos sem vida! Vi muita falta de vontade do cirurgião. Nem retirou tudo...totalmente sem paciência. Estava ali apenas para cumprir procedimento! Somente!

Enquanto isto...por trás das máscaras cirúrgicas da dupla de alunas, via apenas seus olhos aflitos diante daquela situação.

Estava muito chateada com o registro incompleto. Como não relatar a verdade sobre aquela ferida? Que absurdo! Não queria que minhas alunas tivessem que passar por tal instante em seu primeiro dia de aula prática. O pior é que não dava mais para voltar atrás.

Quando o médico saiu, pedi para que uma das alunas pegasse mais material para realizar o curativo. Pois... até então...só ficamos sabendo do tamanho real da ferida naquele momento.

Auxiliei a dupla com a limpeza da ferida. E aí senti que uma delas estava passando mal. Pedi para se afastar e terminei o processo com a outra colega integrante da dupla.

Quando terminamos e observei que as outras duplas estavam indo bem, afastei-me por alguns minutos para conversar com a líder de enfermagem. Ela estava em sua sala...não em atividade!

Fui conversar com ela sobre a situação dos registros daquele paciente sofrido e sobre o tamanho de sua ferida. Era uma falha horrorosa da enfermagem. Expliquei tudo a ela. Então...de repente,sem responder nada sobre o assunto, ela começa a falar sobre a morte de seu cachorrinho. Que deveria ter inclusive um cemitério para os bichinhos quando falecessem. Confesso que a resposta dela me causou espanto. Não pelo conteúdo exposto por ela, pois amo animais...amo qualquer forma de vida! Inclusive entendi sua dor. Mas havia naquele lugar muito sofrimento. O jovem paciente já estava lá há mais de um mês em cima de uma cama e certamente não demoraria muito para morrer de uma septicemia (infecção generalizada). Sua equipe em total desgaste de tanto trabalho. Ela não deu atenção ao que expliquei e muito menos para a dor do outro. Simplesmente desconversou dando a desculpa da morte de seu animal. A dor dela era mais importante!

Fiquei triste e chateada! Senti-me inútil,de mãos atadas, pois era apenas professora!

O que eu vejo nos hospitais públicos é um verdadeiro comodismo. Não um comodismo por preguiça,mas um comodismo por não buscar mudanças...um comodismo por não compreender a dor do outro...um comodismo por não tolerar o colega trabalho...um comodismo para não ser equipe e sim grupo...um comodismo para não ser solidário...um comodismo para não amar acima de qualquer preconceito.

Mudanças dão trabalho,nos expõe...nos estressa...há conflitos...mas no final há transformação por dentro de cada ser e do ambiente. Algo mágico acontece...o espírito de substituição e de equipe contagia a todos com o tempo e dá coragem para continuar com a ideia de libertação do velho para o novo.

Falo isto não como uma utopia inexistente,mas por experiência própria de um dia já ter confrontado o próprio comodismo e a possível mudança como líder na saúde! Desgastante ao extremo...confesso! Mas...com um final surpreendente e enriquecedor para alma!

Precisamos de mais corações sonhadores com almas que buscam uma transmutação totalmente possível desse mal hábito desumano dos trabalhadores de saúde.

As desculpas são inúmeras para se defenderem diante do caos o qual grande parte eles mesmos proporcionam e mantém. A culpa é sempre da falta de verba, do Estado, do diretor do Hospital, dos Médicos, das lideranças de Enfermagem...ninguém se inclui como culpado...sentem-se todos vítimas em efeito dominó...sentem-se todos coitados...colocam-se numa postura de aceitação tranquila de inferioridade numa "hierarquia" de poderes apenas para justificarem sua passividade! Ou seja...quem deve resolver o problema é quem está acima do outro! Pensamento este inteiramente egoísta de indivíduos que não se enquadram no papel solidário tão posto em prática por Jesus Cristo em tempos remotos para nos provar que somos a imagem e a semelhança divina.

Mal entendem que uma mudança não depende do cargo pelo qual se ocupa,mas da vontade de querer mudar!

Numa guerra jamais se abandona um ferido...numa guerra todos estão unidos com um único propósito: vencer o inimigo. Pois que esses profissionais vençam o caos com união e amor...vençam a si mesmos lutando contra a indiferença em relação à dor do outro.

Infelizmente, o jovem paciente, dias depois, foi para a UTI e morreu de infecção generalizada... para não dizer que roubaram sua vida...que morreu por falta de AMOR!

(Coração Pensante)

"Mas a morte nas condições mais desprezíveis é uma morte não livre, uma morte no tempo errado, uma morte covarde. Por amor à vida se deveria desejar outra morte, livre, consciente, sem acaso, sem assalto..." (Nietzsche - Aforismo Moral para os médicos)

Coração Pensante
Enviado por Coração Pensante em 15/05/2016
Código do texto: T5636163
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