A FORÇA DO AMOR

As águas subiam rapidamente. Cada um procurava salvar o que podia. Dona Maricota lutava para colocar alguma coisa em cima da mesa. A compra mensal já havia colocado em cima do armário, numa tentativa vã de guardar o que gastou com seu parco salário. Mas, a força da água já tirava os móveis do lugar e a qualquer momento tudo viria ao chão.

Em todo o bairro o movimento era o mesmo: uns entravam outros saíam tentando erguer alguns móveis, outros carregavam o que podiam. Choro, gemido, xingamento misturavam-se aos silêncios de rostos travados pela dor do desamparo, do descaso para com os menos favorecidos. O círculo era repetitivo e tolerável. Como a morte, sabe-se que vem, mas ninguém se conforma com isso.

Não havia pausa para comer alguma coisa, deitar para recuperar as forças. Tudo havia sido sugado pelo poder destrutivo da enchente que adentrara nas casas sem pedir licença. A energia elétrica já havia sido cortada, na tentativa de prevenir mais mortes. Porque as águas havia levado muitos que tinham construído seus barracos à beira do rio, não dando tempo sequer dos moradores desavisados saírem ilesos. O povaréu lutava como podia.~A força da água era implacável.

Em outro barraco encontrava-se dona Janete, que à luz de vela preocupava-se apenas em juntar os documentos, algumas mudas de roupa, uma blusa de tricô, meias, um cobertor. Aos sessenta e oito anos não tinha força para erguer os poucos móveis que conseguira por meio de doações ou apanhados no amontoado de lixo que alguém descartara por não ter utilidade. Essa não era a primeira enchente, nem seria a última. Se Deus lhe desse mais anos de vida, com certeza enfrentaria mais outras. Não tinha como vender o barraco e ir para outro lugar.

Após juntar tudo, lembrou-se da caixa de sapato onde guardava fotografias amareladas e manchadas – lembranças do tempo que não voltam mais. Não sentia medo, pois não estava sozinha. Estendeu a mão trêmula e enrugada pelo frio para uma caixa de biscoito Pilar. Sim, ali estava todo seu tesouro. Testa franzida, olhos embaçados pelos anos não revelavam o amor e a força que haviam naquele coração. Sobre a pia da cozinha estavam bem enroladinhos e abrigados: sua gata Chaninha e seu cãozinho Quito. Todos foram resgatados da rua.

Havia chegado a hora. Colocou a caixa em cima da cabeça. E com a outra mão ergueu a sacola de plástico onde levava seus parcos pertences. Saiu sem saber para onde ir. Não se preocupava com as coisas que deixara para trás. Por tantas vezes repetira esses atos. Fazia parte da vida: perdas e ganhos. Bom e mau. Seu lema era: Quem não conseguia lidar com as facetas da vida tornava-se escravo de suas dores.

Ela era apenas mais uma na multidão de gente que saía. Com o olhar sempre adiante ia rompendo a água que já lhe alcançava a cintura. No peito uma certeza: encontrar um lugar eco e seguro para si e seus companheiros de jornada. Não precisou procurar muito. A prefeitura já havia improvisado um lugar onde os atingidos pela enchente iriam ficar. Foi atendida pelos voluntários, levada até à assistente social. A caixa de biscoito no colo. A sacola de plástico no chão. Cadastro feito. Colchão, lençóis, roupa, comida quente. Tudo acertado para dona Janete ficar. Mas havia um, porém: os animais seriam transferidos para uma área onde a prefeitura reservara. Ali no abrigo não poderiam ficar.

Dona Janete não titubeou. Agradeceu pela acolhida, mas sem seus amigos não poderia ficar. A assistente social pediu ajuda, transferiu o caso para outros voluntários e foi atender os outros, de uma fila que não parava de crescer. Esperta, Dona Janete pediu um tempo para os atarefados voluntários. Precisava se despedir dos seus companheiros de longos anos. No entra e sai de gente, os mesmos esqueceram-se da anciã e, não perceberam quando ela escapuliu bem debaixo de suas barbas.

Na esquina mais próxima, dona Janete já havia descoberto seu rumo. Sabia onde haveria lugar para ela e seus amigos. Iria procurar os moradores de rua. Ela sabia que os que moravam debaixo de pontes ou em frente às lojas mantinham perto de si seus cães e gatos. Tinha certeza que se encontrasse aquele grupo do viaduto do Forte Sete Pontas ou os da Praça Treze de Maio seria bem recebida, pois quando passava por ali, sempre distribuía umas moedas e nunca fora molestada.

Quando chegara ao Forte percebera que não havia se enganado. Ao verem àquela velhota arrastando os pés, tropeçando pelas horas de andanças e fraca por não ter comido nada alimentar-se dirigiram-se até ela e ali, foi acolhida por mãos calorosas e sorrisos desdentados. O pão foi compartilhado. Os animais receberam cuidados. Dona Janete sabia que não estava no paraíso, mas tinha certeza que havia feito uma boa escolha. Quando as águas baixassem, iria voltar, mas por enquanto, seria contada como mais um dentre tantos que são invisíveis para os transeuntes. Ela, Chaninha e Quito estavam deitados sobre papelões. Já de roupa trocada, Dona Janete se aquecia sob o cobertor. Para ela não bastava ter o corpo aquecido. Para estar bem, precisava ter o coração aquecido pela força do amor.

IONE SAK (28/05/16)

Ione Sak
Enviado por Ione Sak em 28/05/2016
Código do texto: T5650196
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2016. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.