A VELHA DA CASA TORTA

Toda enrugada, passos curtos, ombros curvados pelo peso dos anos. Não sabia quantos anos tinha, mas os antigos diziam que ela adentrava o centenário. Todos que a conhecia tinham estórias para contar onde a figura da velhinha estava no centro do enredo. Como poderia ser de outra forma? Primeiro: não faltava a nenhum velório. Sabia dos acontecimentos da cidade justamente nas viradas das noites, enquanto ‘fazia presença’ no meio dos que entravam e saíam, nas conversas ao redor do caixão, tomando um café ou uma caneca de chá ia sendo informada de tudo e de todos. Segundo: Havia nela uma característica marcante. era o amor pelas coisas que os ‘dedos do Criador’ criou. Ah, como amava as árvores, as ‘plantinhas miúdas’, os ‘ bichinhos graúdos e os pequeninitos’. Na casa de bairro, onde a madeira vencida pelo tempo e corroída pelos cupins todos encontravam refugio. Ali ninguém ousava ‘levantar um dedo’ para maltratar seus companheiros.

Dona Zezita levantava com os pássaros e dormia na mesma hora que os mesmos se recolhiam. Sua tapera torta ficava de frente a serra da Siriema. Uma vista de encher os olhos e acalentar o coração. Água fresca e alimento não faltavam, pois nas terras da anciã havia um barreiro que valia ouro: tinha água para ‘muitos verões’. Dona Zezita vivia esquecida pelas autoridades. Os vizinhos mais próximos ficavam bem distantes. Não tinha medo de nada. Ou quase nada. Quando vinha pra cidade, nas conversas com a dona do mercado onde comprava há quatro décadas, ela dizia, com sua boca cheia de cacos de dentes e chupando a língua:

_ Antigamente a gente andava a pé por esse mundo e num se via nada de nada, mai despoise qui pareceu essas gerigonça de quatru roda as coisa só dera pra disandá. Sabi du qui tenhu medu mermu, dona ludinha? – espichava os beiços trêmulos e balançava a cabeça para destacar o que dizia. Virava pra um lado, colocava a mão na cintura e inclinando-se, cochichava:

_ Essa véia tem medu de gente cum sem coração. Dissu tenhu medu!

Dona Lourdinha sempre insistia pra que ela viesse morar na cidade, pois se preocupava com o bem estar daquela velhinha que lhe era tão cara. Mas, teimava em não aceitar conselhos. Deixar sua tapera, seus animais, suas árvores que viu crescer? Não! De jeito nenhum! Sempre dizia, quando insistiam no assunto:

_ Quandu ieu fechá os óios, faça dessi corpu véio o qui quisé. Deispois e prontu!

Do parco salário comprava milho, serragem, pois qualquer animal que passasse pela sua porteira encontrava pneus e bacias ressecadas pelo tempo com alimento e água. No alpendre as aves faziam ninho. Conversava com os animais e parecia que todos se compreendiam mutualmente. Era feliz.

Que segredo tinha aquela anciã? Algumas pessoas começaram a despertar para sua pessoa. Uma equipe decidiu visitar a área rural. Quando chegou até à tapera da mesma encontraram motivos de sobra para questionar seu modo de viver. Questionaram sua sanidade e após quinze dias voltaram com uma decisão: iriam entrar em contato com um parente distante e fora decidido que ela não poderia mais ficar ali. Enquanto a parentela não chegava, ela iria pra cidade. Lugar adequado para pessoas de idade como ela...Ela baixou a cabeça. Ajudaram a arrumar alguns trecos. O carro da prefeitura já chegara para levar à anciã e seus parcos pertences.

Dona Zezita nada dizia. Parecia que perdera a voz. Olhos secos, os braços magros abraçando um casaco de chita, todo remendado. Aceitava o inaceitável. Colocaram-na num quartinho e deixaram-na aos cuidados de Dona Lourdinha que quando soube que um grupo decidiu pelo ‘bem estar’ da amiga, correu para tentar minimizar o estrago. Sabia que aquilo não ia terminar bem. Limpou o quartinho, colocou flores em um jarro. Nas paredes calendários com imagens de animais... Mas, quando viu a amiga descer do carro, a cena lhe trancou o coração. Não era a mesma pessoa que adentrava no seu comércio. Parecia um vaso quebrado e sem conserto.

O grupo partiu despois que descarregaram tudo: Dona Zezita e seus trecos. Dona Lourdes tentou alegrar a amiga de longas datas. Nada funcionava. Ofereceu um prato com sopa que havia preparado com tanto carinho, a anciã recusou. Dona Zezita pediu para deitar, pois estava se sentindo muito cansada. Estendeu uma das mãos para a amiga e disse com voz trêmula:

_ Viu o qui os doutô fez comigu? – uma lágrima solitária desceu pela face desfigurada. A tristeza gritava por cada pedaço daquele corpo envelhecido, mas que teve sua fagulha interior apagada.

Dona Lourdes entendeu a mensagem. Queria dizer tanta coisa, mas as palavras não trariam a solução que a amiga precisava. Disse que viria no dia seguinte. A equipe também prometera que a anciã teria toda assistência que precisasse. Os vizinhos se prontificaram a não deixar faltar nada para a nova moradora da rua. E assim, todos aparentavam ter feito o melhor.

No dia seguinte, bateram na porta do quartinho. Ninguém atendeu. Foram chamar dona Lourdes que ficara com uma cópia da chave. A mesma veio correndo – o coração já lhe dizia o que encontraria.

Ao abrir a porta, dona Zezita jazia de joelhos. Seu corpo frio demonstrava que morrera há horas. A blusa encharcada de lágrimas era o sinal de que o jarro não suportara a queda e realmente não haveria necessidade de conserto.

Ione Sak ( 30/06/16)

Ione Sak
Enviado por Ione Sak em 30/05/2016
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