SOCORRAM-ME SUBI NO ÔNIBUS EM MARROCOS

Já eram quase duas da manhã e o sono dava sinais. Juvenal esfregou os olhos mais uma vez por trás das lentes dos óculos e bocejou. “Vou dormir” pensou. Mas a lauda não havia sido preenchida ainda e Juvenal queria terminar – ao menos tentar – e os verbetes e suas definições não podiam esperar. Já tinha terminado a pesquisa havia meses e agora precisava entregar o trabalho todo à editora, que lançaria um novo dicionário muito em breve e aqueles verbetes precisavam constar. Juvenal era um pesquisador, filósofo e o um dos melhores, senão o melhor, morfologista do país. Juvenal Literatto tinha letra e palavra até no nome. Era praticamente um predestinado. E o sono agora não mais batia, espancava. E Juvenal resistia bravamente, cauteloso para não digitar nada errado. Daí precisou piscar. E o fez em câmera lenta. Erro fatal. O olho não abriu mais e Juvenal, que já estava recostado na cadeira do computador, ficou alí mesmo, forçado que era a acomodar-se nos braços de Morpheu.

Quando abriu os olhos estava nu, sentado em uma superfície de pedra e poeira. Acordou esfregando os olhos tentando reconhecer o lugar. Era uma cidade. Talvez a sua. Talvez a dos seus pais, aquela do interior, de onde viera com dois anos de idade para a capital. Ou um misto das duas. Olhou a sua nudez e olhou a cidade de novo. Pensou em voz alta:

- Mas que diabos! E ao preferir essas primeiras palavras, viu que além do som, saía logo acima de sua cabeça um balão, desses de quadrinhos, com as palavras que acabara de proferir.

- Senhor chamô? – a voz vinha do alto, das ruínas do que tinha sido um prédio de apartamentos. E novamente o balãozinho acima da cabeça.

- Quem está aí? Perguntou um Juvenal assustado. Novo balão. Aquilo estava ficando chato.

- É eu. Sevirino. Outro balão. O detalhe é no balão estava escrito exatamente como o sujeito falava. Horripilante.

- “É eu” não. Desculpe senhor Severino. Mas o correto seria “sou eu”

- Ah! Tão tá. Inton é eu e sô eu. E lascou uma gargalhada histriônica. E ato reflexo, pôs a cara rente a um dos andares que fez com que Juvenal conseguisse ver o rosto do tal Severino. E lá estava o balão.

- Senhor, pode me dizer onde estou?

- Nóis vai fazê meió. Vô tá descendo pra mórdi cunversêiá

“Nós” pensou Juvenal. “Vou estar”... Ai, meu Deus! Gerundismo não! A aflição começou a incomodar e a crescer numa velocidade extraordinária. Juvenal era alérgico a quem não empregasse a língua materna de forma correta ou ao menos aceitável. Tinha verdadeira obsessão pela nossa língua, como se formava, suas origens, novas palavras. Nada contra aos regionalismos, pensava. Mas tudo corretamente empregado. Além dos balões que exibiam "como" estava escrito. Uma calamidade! E o sujeito vem logo com um gerúndio para acabar com o dia. Mas – pensou ainda – estava perdido e pelado e precisava de ajuda. Então resolveu relevar e não corrigir o homem, já que viu que ali o negócio era feio de se ver e ouvir.

Em um átimo de segundo o homem estava em pé ao lado de Juvenal, com uma mulher e duas filhas, todas nuas.

Ele sorria muito e as mulheres também e Juvenal tentou forçar um sorriso para não passar de mal educado. Tentou entabular uma conversa de novo.

- Então senhor er....Severino... O senhor ia me dizer onde eu estava e eu...

- Ah! – o homem sorriu ainda mais – é mêmo.

“Mêmo”? Ai Deus – Juvenal sentiu um calafrio. Olhava o balão acima da cabeça do homem antes que ele se dissolvesse no ar e seus olhos mal podiam crer naquilo que lia.

- Num tem pobrema. A gente vâmo levá o senhô prá dá umas vorta antes.

- “Pobrema”? “UmaS vortA”? Deusdeusdeus.... – Juvenal começava a achar que aquilo era uma brincadeira de mau gosto. Algum amigo seu estava lhe pregando uma peça. E das boas.

Foi aí que um automóvel surgiu do nada e parou em frente ao grupo. Tinha aquelas aparelhagens de som que tocam mais para quem está fora do carro do que para quem está dentro. O som, um funk, desses proibidões, cuja letra e rimas são verdadeiros “primores” da gramática. Juvenal quando ouvia aquilo ficava todo empolado. Um verdadeiro horror. Uma tortura auditiva para quem estava acostumado com o verdadeiro falar e ouvir de sua língua materna.

“Então nóis vai até as mina/rebola, rebola sem pará/se você quisé nóis ti incina/a dança do baguio prá zuá”

Juvenal começou a ouvir o refrão da música – se é que aquilo podia ser chamado de música – e o ar começou a lhe faltar.

- Soc...Soco...Socorr... – o ar não vinha e ele se sentia cada vez mais fraco. Caiu de joelhos tentando respirar. Foi quando a mulher que sorria em pé ao lado do marido, fez uma cara estranha de espanto e deu um tapa na cabeça da filha mais velha, vociferando:

- Juvecleide, sua burra! Num tá vêno qui o home tá passano ruim? Traiz logo a cacha de premero socorro!

Juvenal quase teve um derrame seguido de uns três ou quatro infartos.

Em seguida, chega a moça com uma caixa pequena, com uma cruz torta pintada de vermelho na tampa. Nela, podia se ler “PREMERU ÇOCORU”

Juvenal arregalou os olhos, inspirou como se fosse o último suspiro de sua vida, levantou-se de supetão e saiu em desabalada carreira. Mesmo com as partes à mostra, correu tanto que não viu para onde ia. Acabou indo parar em um lugar que parecia ser o centro daquele lugar que já tinha sido uma cidade. Começou a olhar em volta para ver se achava alguma indicação de onde estava e, para isso tinha que ler as placas. Palavras escritas com cê cedilha ao invés de ésse no lugar. O que era para ser “z” tinha virado um “s” mal feito. Muitas coisas escritas, literalmente, como se fala. “Oficina” tinha virado “aufisina”. Letras engolidas, palavras trocadas. Um verdadeiro horror. Começou a aumentar o desespero que já era grande. Quando está olhando para uma placa que anunciava um passeio – o troço era tão gritante que ele não conseguia desgrudar os olhos – “Escurção” estava escrito, sentiu uma mão em seu ombro. Era Severino, surgido sabe-se lá de onde e a família. Agora a mais nova mexia e remexia num aparelho de celular. Juvenal fixou na menina e viu que tudo que ela digitava no aparelhinho era mostrado em forma de balão. Começou a ler atrocidade atrás de atrocidade. “çamos” todos locos. “dipois" vâmu imbora. “kéro fica cum vossê”. Aquilo tirou o que restava do ar de Juvenal. Quanto mais ele olhava em volta, mais as atrocidades pareciam multiplicar-se. Então outros “Severinos” surgiram e começaram a falar simultaneamente ao original. E outras filhas, e outras mulheres. E outras placas. Mais e mais surgiam. E quanto mais Juvenal se virava e tentava escapar, mais surgiam. E quanto mais o desespero parecia lhe tomar o fôlego, mais rápida era a multiplicação de pessoas e placas, letreiros, balões. Foi quando conseguiu uma brecha e numa aspirada de pulmão, soltou um grito, desses de acordar defunto. Tinha fechado os olhos e no meio do grito resolveu abri-los. Viu a proteção de tela de seu computador e o teclado mais abaixo. Viu que estava de roupas e ainda sentado na cadeira de sua escrivaninha. Ofegante, recuperou a consciência da realidade e suspirou aliviado. Limpou a testa úmida de suor com as costas das mãos e ia se levantar, quando olhou de lado. Viu um vulto e de um salto, percebeu que era Ducileide, sua diarista.

- Seu Juvenal. Dormiu de novo na cadeira?

- Pois é Ducileide... Pois é.

- Vim ver se o senhor quer que eu "faço" almoço. Tinha pensado em comprar figo na feira pro senhor.

- Como assim Ducileide? - pensou no “faço” e no erro de concordância, mas afinal a moça era humilde e não queria ficar corrigindo - Figo? Mas eu nem gosto de figo? Além do que, pensou, figo seria para a sobremesa não?

- Claro que não seu Juvenal. Sei muito bem que o senhor adora figo. Principalmente bife. Ah! Um bom almoço com bife de figo... e o senhor vai estar novo em fôia. Aliás, aquele seu “amiguíssimo” Doutor Fernandes ligou enquanto o senhor 'tava dormino. E se o senhor não quiser o bife de figo, faço instrogonofi. O senhor que sabe.

- Ahn? Figo? Fôia? Amiguissimo? Dormino? Instrogonofi? Juvenal arregalou os olhos e escancarou a boca, levantou-se e saiu correndo. Dizem que foi achado dias depois, dormindo, encolhidinho, nos degraus da porta da ABL.

E Ducileide ficou sem entender nada, “nadica di nada”, visse?