COR DE BURRO FUGIDO
          Dividiam as despesas e espaços do apartamento onde moravam, quando ainda universitários. Acrescido a isso, temores, sentimentos e sonhos, próprios de jovens audaciosos. Um deles, quando adolescente, sonhava em fazer parte dos “paquitos” da Xuxa; por vezes enviou à produção do programa televisivo fotos suas em posses e looks diversos, sem nunca sequer receber retorno. O outro se imaginava cantando em pubs intimistas – embora taquara rachada – e conhecer a cantora Ângela Rorô. Os anos se passaram, Xuxa já não era mais dos baixinhos e, Ângela Rorô sumiu do pedaço, depois de tantas doses exageradas de uísque.
            A casa dos quarenta lhes trouxe algumas particularidades a ambos. Depois de verem seus sonhos juvenis iniciais rolarem ladeira abaixo, a idade lhes acenava com fios de cabelos brancos, nada bem-vindos. Era um problema.       
            Enquanto o ex-aspirante a paquito resolvia parcialmente seu problema mandando cortar seu cabelo na máquina zero; o mequetrefe do taquara rachada, por sua vez, não conseguia esconder os impertinentes cabelos brancos que teimavam assomar-se.
            ̶ Coisa de família. Soube que meu tio, ainda jovem, já tinha cabelos brancos. Vi uma fotografia da época em que ele era motorista de um calhambeque, de uniforme e gorro na mão. – tentava justificar-se Murilo.
            Certa vez, o amigo Fabrício o aconselhou a pintar o cabelo.
            ̶  Não! Não! – foi enfático ao responder-lhe. – As pessoas logo perceberão que pintei. – acrescentou incomodado.
            Sem dar-se por vencido e, querendo ajudar o amigo, Fabrício tentou persuadi-lo:
            ̶ Não tô te falando para pintar o cabelo de preto. Existe uma substância que tonaliza de cinza o cabelo que teima nascer branco. Você, nem ninguém, vão perceber. Tenta. – fez-se um silêncio e ambos se olharam.
            Sábado, dia para atividades de lazer. Lá estava a postos Fabrício com a caixa de pintura lendo as instruções no verso. Enquanto isso mandou o Murilo molhar o cabelo.
            ̶ Não se preocupe, vou seguir todas as instruções. – Fabrício tentou acalmar o amigo.
            Murilo, sentado, sentia o pincel molhado subindo e descendo a nuca, atravessando a cabeça de orelha a orelha; vez outra se limpava a fronte.
            ̶ Pronto! Agora é só esperar um tempinho. – disse Fabrício, aprendiz de cabeleireiro, envolvendo a cabeça do amigo com uma toalha velha.
            Ring! Ring! Ring! O telefone toca e Fabrício atende. Após cumprimentos passa para Murilo. Era sua mãe que, amiúde, aos sábados lhe telefonava. Conversa vai, conversa vem: quem casou no papel, quem casou atrás da porta, quem enviuvou, quem foi pra cidade dos pés juntos, quem sumiu, quem ainda estava com a avó atrás do toco, quem andava com os nervos em pandarecos, quem acendeu uma vela a Deus e outra ao diabo, quem fugiu com quem ao cantar do galo, quem aparece ao toque das ave-marias, etc.
            A fala ao telefone se alongou. Murilo só percebeu quando Fabrício, exaltado e de olhos esbugalhados, lhe mostrava a caixa da tintura que usou.
            Despediu-se da mãe e voltando-se para Fabrício:
            ̶  Pra que tanto escândalo?! O que foi?
            Ainda com a caixa de tintura na mão, Fabrício assinalava um item das instruções: “deixar, no máximo, quinze minutos no cabelo”.
            De quinze para quarenta minutos existe uma substancial diferença, em certas situações. Nesta, principalmente, onde, o tom sairia do branco, passando pelo cinza – que era o esperado – para chegar ao preto – o inesperado.
            Correu ao espelho. Ao refletir-se, assustou-se; não se reconhecia. O tom preto na pele branca o tornara mais velho.
            ̶  Ficou horrível! Como faço para tirar tudo isto?!
            Ambos aflitos – em outra situação estariam rindo de si mesmos – não sabiam o que fazer. Murilo enfiou a cabeça sob o jorro de água na pia de lavar roupa, esfregando sem parar. Após um tempo, enxugou o cabelo e se dirigiu ao espelho a conferir. Para seu espanto a tonalidade preta estava mais forte. Que desespero. Correu ao banheiro e usou de todos os shampoos que encontrou. Já com o couro cabeludo dolorido, enxugou-se e, novamente foi ao espelho. Piorou, a tonalidade ficou mais luminosa.
            Jogou-se na poltrona da sala com os cabelos ainda úmidos e mil pensamentos na cabeça, além da dor no couro cabeludo. Ainda não eram 18h, pensou; o cabelereiro, geralmente aos sábados, trabalha até mais tarde. Trocou-se de roupa, pegou a chave do carro e saiu a busca de Balbino. Ao chegar ao salão, ainda com pessoas a serem atendidas, Balbino o recebe estupefato com o tom do cabelo.
            ̶ Infelizmente não adianta fazer nada. Espera que, com o tempo, volte ao normal. Coisa de duas a três semanas. – aconselhou Balbino, ainda com a tesoura e pente na mão.
            O fim de semana foi tétrico para Murilo. O amigo Fabrício, após várias tentativas de amenizar a situação, achou por bem, visitar a família o restante do fim de semana.
            Na segunda-feira, Murilo tinha que ministrar aula às 7h. Chegou ao colégio o mais cedo possível e se enfiou na sala para evitar gozações. Pegou suas anotações e foi grafando no quadro de giz, enquanto escutava os alunos entrando no recinto.
            ̶  É pra copiar, professor? – alguém lhe pergunta.
            ̶ Sim. – limitou-se a responder, sem voltar-se para os alunos.
            Não demorou muito, o burburinho tomou conta da sala de aula. Até que um aluno de nome Reinaldo, lhe perguntou:
            ̶  Professor, o senhor pintou o cabelo?
            ̶ Não. – respondeu, tentando disfarçar. O aluno não deixou por menos e reforçou:
            ̶  Pintou sim, professor. Essa cor preta é tinta pura. Sei por que minha mãe pinta os cabelos dessa cor.
            As gargalhadas, na sala, soaram nos ouvidos de Murilo por um longo tempo, sem contar que, por semanas o cabelo aparentava cor de burro fugido.

(Conto publicado em "Contos Livres - Edição Especial Abril 2016" - Câmara Brasileira de Jovens Escritores/CBJE, p.24-27)