DONA BILUCA
            Não passava das 15h quando, sorrateiramente, D. Biluca dirigiu-se a um dos caixas da lotérica. Olhando-a de trás, já se podia deduzir que era de estatura baixa, mesmo sobre uma sandália com solado em declive de, aproximadamente, três centímetros, sujeita ao dorso dos pés, por duas tiras grossas, em formato de cruz.
            Enquanto a fila crescia, D. Biluca abria sua grande bolsa marrom-chocolate e retirava um formulário para efetuar pagamento. Sob os olhares dos outros e, pouco interessada no que pensassem, entabulou o diálogo, em tom alto, com a operadora do caixa:
            ̶ E ai morena, curtiu o feriado?
            ̶ Que feriado? Feriado no domingo, não tem graça. Mas, valeu.
            ̶ Pra mim, todo dia é feriado. É a vantagem de ser aposentada. E por falar em proventos da aposentadoria, essa mixaria não dá nem pra pagar o condomínio. Calcula ai quanto tenho que pagar.
            ̶  São seiscentos e cinquenta e dois reais, dona Biluca.
            ̶  O quê?! Você tá doida? Você endoideceu de ontem pra hoje?
            ̶ Não. Não tô doida não.
           ̶ Caramba! Esse povo rouba mesmo. Onde se viu pagar isso pelo condomínio; o prédio não é lá aquelas coisas para cobrar tanto assim.
            Nesse momento um zum-zum se escutou na fila. Alguém comentava o vestido de D. Biluca: de fundo azul-petróleo, com grandes flores amarelas e vermelhas espalhadas. Quanto aos cabelos, para seus noventa anos, eram fartos, cortados rentes à nuca, tingidos, impecavelmente, de um castanho-escuro.
            ̶ Vou aproveitar e pagar este outro aqui. Vê ai, quanto dá a soma. – continuou D. Biluca.
            A operadora do caixa fez a somatória, calculando os juros de atraso e outras taxas e mostrou-lhe o total. Ao que D. Biluca exclamou:
            ̶ O queeeê?! Você tá doida? Você endoideceu de ontem pra hoje?
            ̶ Não. Não tô doida não.
            ̶  Tá fora da casinha? Bebeu muito ontem?
           ̶ Não tô doida, nem fora da casinha, dona Biluca. E, ontem, bebi pouco. Não tô de ressaca.
            ̶  Hum...! Então, tá. – respondeu, sorridente D. Biluca.
         ̶ Ui! Tô perdendo minha novela, justamente hoje que o presidente da empresa vai beijar Bety. – murmurou baixinho D. Biluca.
            ̶  O quê? A senhora me perguntou alguma coisa? – perguntou-lhe a operadora.
            ̶ Não querida. Estava falando aqui com meus botões. É que estou perdendo o capítulo da minha novela “Bety, a feia”.
            ̶  Ah! A senhora tem um real para facilitar o troco?
            ̶ Sei lá! Como vou saber? Buscando é claro! – remexeu a bolsa e não encontrou.
            ̶ Não tenho. Faz o seguinte, você que tem tanto dinheiro ai, rouba de alguém e deposita um real na minha conta, tá?
            Nesse momento, o pessoal da fila não se aguentou e:
            ̶  Quá-quá-quá!  Quá-quá-quá!
         D. Biluca, rapidamente, girou sobre o solado da sandália e, voltando para os outros, exclamou:
            ̶ Psiu! Psiu! Psiu! – colocando o dedo indicador esquerdo – era canhota –, em riste e na vertical, sobre os lábios e acrescentou:
           ̶ Vocês não entendem nada de negociação! Eu venho pagar meus atrasados e, ainda, querem me tirar mais um real? – voltou-se novamente para a operadora do caixa.
            ̶ Fazer o quê, né, filinha? – resmungou ao receber os recibos de pagamento. Fechou a grande bolsa que levava e voltou-se para a saída. Parou um instante, olhou para os da fila e disse:
             ̶  Olha ai! Pensei que era só eu, mas tem um monte de bobos que vão pagar também.
            Avançou alguns passos e voltou-se para um senhor de meia-idade, do qual segurou a mão direita:
            ̶ A gente paga por tudo. Paga para comer; paga viver. Até para morrer a gente paga. Com noventa anos, só não pago para namorar. Fui!
 
(Conto publicado na Antologia de Poesias, Contos e Crônicas"Existência", Porto de Lenha Editora, 2016, p.41-43. Também na obra do autor "As viúvas do falecido", Clube de Autores, 2016, p.33-34)